Os vivos dormem por cima, os mortos dormem por baixo. Por vezes há uma linha ténue que separa a vida da morte, por outras anda tudo misturado, como se por contraste fizessem parte da mesma matéria. Os mexicanos fazem da morte um culto, exorcizam os seus fantasmas assimilando-os. Mas nenhuma cultura terá chegado ao extremo desta Cidade dos Mortos, no Cairo, que Sérgio Tréfaut retrata no seu filme. A cidade é um imenso cemitério, os moradores têm túmulos em casa, e os mortos fazem parte do quotidiano. Não é um cemitério morto, explique-se, por ali continuam a ser realizados funerais, a transladarem-se corpos, a venderem-se jazigos.
Um cenário destes, obviamente, é muito apetecível para um documentário, até para a National Geografic. Se a curiosidade natural que temos por outras culturas, por si só, desperta interesses pelos costumes mais simples, o que dizer do dia-a-dia tão invulgar destas pessoas. Só que Sérgio Trefaut, autor de Os Lisboetas, fundador e ex-diretor do DocLisboa, sabe da necessidade de uma perspetiva.
Sérgio Tréfaut teve que ultrapassar vários obstáculos de produção. Não foi fácil filmar no Egito de Mubarak. Deparou-se com muitíssima burocracia que levou vários anos a ser ultrapassada, a que se juntaram vários problemas técnicos. Além do constrangimento natural de filmar num local de que desconhece a cultura e a língua. Tréfaut venceu esses obstáculosde forma criativa, não entrando naquele que já é um lugar-comum do documentarismo, que é a exposição autoconsciente das peripécias do próprio documentário -seria tentador fazer um documentário a falar de si próprio.
A Cidade dos Mortos não é falado em português, mas sim em árabe. Para isso, de forma um pouco plástica para um documentário, Sérgio Tréfaut serve-se de um narrador. Um narrador participante, um dos coveiros que vive na cidade. O seu tom é mesmo o de um narrador que conta uma história. E as suas palavras são ilustradas com imagens e intercaladas com depoimentos de outras pessoas.
Tréfaut definiu como objetivo do filme “mostrar a relação dos homens com a vida e com a morte, de pessoas de quem gosto e que admiro (e que podem viver em qualquer latitude), da alegria e do entusiasmo que podem ter pela vida, em condições adversas.” Há portanto várias dimensões, por um lado o exotismo da situação e a forma como as pessoas que vivem entre os mortos lidam com a própria morte. Nessa perspetiva tudo se mostra desde casamentos a teatros de fantoches, a insistência quase caricata em levar a vida como se nada fosse, como se a morte não tivesse sempre à espreita. Mas por outro, exibem-se as próprias dificuldades, que não se trata propriamente do medo, do terror dos fantasmas, ou do desconforto tétrico, mas sim de questões algo mais práticas, como o próprio cheiro que empesta a cidade.
A tentativa de ir além, ou noutra direção, da National Geographic é plenamente conseguida. Não é um filme da BBC ou um teledocumentário banal. Contudo, a questão metafísica, a forma como lidam com a morte, não se torna particularmente rica. Não vai muito além do “do pó nasceste em pó te hás de tornar”. O que até defrauda eventuais expectativas místicas. Juntamente com esta média metragem é exibida uma curta, Waiting For Paradise, de 19 minutos, que tem a música como pano de fundo e é o complemento mais indicado do filme.