Vídeo da SIC sobre a estreia de Azul Longe nas Colinas no final desta página
Entrevista
Beatriz Batarda: “Os atores são como esponjas e espelhos”
O ensaio decorre numa pequena sala, nas catacumbas do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. Azul Longe nas Colinas há de estrear-se, lá em cima, na sala estúdio, no próximo dia 10 de fevereiro. Sentada atrás de uma mesa de madeira, Beatriz Batarda mastiga pastilha elástica, aperta as mãos, escreve apontamentos num caderninho, dá indicações firmes aos atores, reclina-se, contente, na cadeira ou abana a perna inquieta…
É a segunda vez que a atriz decide ficar fora do palco e assumir o papel de encenadora. Depois de, no ano passado, ter encenado Olá e Adeusinho, encena agora uma peça do inglês Dennis Potter, em que atores adultos fazem de crianças e espelham o nosso mundo de máscaras, mentiras, medo e crueldade. Albano Jerónimo, Bruno Nogueira, Dinarte Branco, Elsa Oliveira, Francisco Nascimento, Luísa Cruz e Nuno Nunes são os atores que Beatriz reuniu para representarem esta peça que há muitos anos tem vontade de levar à cena.
Num projeto dos Arena Ensemble (um grupo informal e de partilha de livros, filmes e textos de teatro, que criou com o realizador Marco Martins, os atores Nuno Lopes, Gonçalo Waddington e Dinarte Branco e o luminotécnico Nuno Meira), rodeou-se de pessoas com quem gosta de trabalhar – como o marido, Bernardo Sassetti, responsável pela música de Azul Longe nas Colinas. Uma experiência para perceber melhor que atriz tem sido e que atriz quer ser, no futuro. Este ano ainda havemos de a encontrar, uma vez mais, fora do palco, a encenar uma peça de Peter Asmussen, Sangue Jovem, no Centro Cultural de Belém, em junho. O que a levou a experimentar a encenação e agora a repetir a experiência? Já tinha pensado nisso, mas nunca muito seriamente. O Diogo Infante fez-me esta proposta, quando decidiu investir em projetos com novos encenadores. Achei que seria arriscado para todos – para mim e para os participantes na iniciativa – esta ser uma primeira experiência e, por isso, encenei Olá e Adeusinho. Quis ter uma outra primeira experiência, para me preparar a mim, e não começar assim, a seco, no Teatro Nacional. Achei que seria descaramento a mais da minha parte. Não foi bem uma atração por encenar, mas, antes, uma necessidade de fuga de representar. Comecei a representar há cerca de 18 anos, mais ou menos profissionalmente, entre cinema e teatro. Tinha 17 anos e nunca mais parei. De repente, há dois anos, um ano e meio, senti que precisava de criar alguma distância em relação ao meu trabalho como atriz, de pensar no que é isto de representar e de contar histórias. Se encenar foi a solução, é porque encenar é interpretar tudo a partir da posição em que me coloquei – não tanto como uma criadora de estéticas ou de correntes, mas mais nesta posição de interpretar todas as personagens e, assim, dirigir os atores naquilo que considero ser a dramaturgia de um texto específico. E perceber, assim, através dos outros, o que tenho andado a fazer e o que quero fazer como atriz. É uma atriz diferente, desde que encena? Sim, muito mais consciente das escolhas que devem, depois, parecer inconscientes. A minha relação com a interpretação mudou. Até aqui, tive uma relação de colagem com as personagens, de sobreposição ao que é uma personagem escrita, bidimensional, que são só palavras, ideias, pensamentos, que eventualmente provocam sentimentos no ator. Agora, tenho uma relação de maior diálogo. Na reposição da peça Ifigénia na Táurida, já depois da encenação de Olá e Adeusinho, a minha relação com o espetáculo foi muito diferente. São preciosismos, mas interiormente abriu-se um diálogo que até aqui não tinha maturidade para fazer. Em que se reflete isso, então? Reflete-se na escolha de uma opinião sobre aquilo que se está a dizer: conseguir diferenciar a opinião do ator da opinião da personagem. Tinha dificuldade em separá-las e, de certa maneira, permitia infiltrações do meu próprio julgamento nas ações das personagens e, muitas vezes, era um julgamento moral que as desvirtuava e tornava redutoras. Já se vê como encenadora também? Não, sinto-me uma profissional do espetáculo. As pessoas de quem me rodeei são da minha geração, já tinha trabalhado com elas. A nossa linguagem é de partilha, de criação em conjunto. Eventualmente, filtro, porque estou de fora e numa posição mais confortável para ver o que respeita o foco da peça e o que são detritos. Encenar nem sequer é uma mudança, é um prolongamento de uma procura enquanto artista de espetáculo, enquanto intérprete, enquanto alguém que tem necessidade, através do teatro, de descobrir o mundo e o próprio “eu”. É para isso que os artistas têm necessidade de produzir, para perceberem quem são e em que mundo é que o seu “eu” está integrado. Como é, para uma atriz habituada a estar em palco, trabalhar agora fora dele? Estou a representar tudo com eles, vibro imenso com eles. Sinto-me ainda mais preenchida… preenchida vezes sete [o número de personagens de Azul Longe nas Colinas]. Ser encenadora é ser atriz vezes sete? Não sei se é isso, mas está a acontecer-me, com esta peça. Sinto-me a representar através deles. Esta peça tem um universo difícil, é um presente envenenado do Dennis Potter aos atores, porque, ao princípio, parece uma coisa muito aliciante, um desafio altamente complexo em que vão poder exibir o seu virtuosismo a fazer de crianças, mas rapidamente percebemos que é muito mais complexo do que um ator adulto a fazer de criança, é uma criança a fazer de adulto. Esse salto é dificílimo de dar. Foi isso que a atraiu em Azul Longe nas Colinas, para a querer encenar? Peguei neste texto há muitos anos, quando representei Quando o Inverno Chegar, com encenação do Marco Martins. E foi logo a primeira peça em que quis pegar, quando decidi encenar. Tem a ver com a minha procura do que é representar, com esta minha necessidade de dissecar a identidade da máscara: qual a identidade de uma pessoa no mundo real, que máscaras utiliza, consoante as circunstâncias e as dinâmicas dos grupos em que está inserida e como é que isso se transfere para um ator e para cena, mais concretamente para um ator que está a usar uma máscara sobre uma máscara sobre outra máscara, e como se faz essa gestão, despindo as máscaras que não interessam e se tornam obstáculos. Uma procura de como se consegue a verdade, a pureza da exposição, sem ser exibicionista ou histérico. Isto quase parece uma obsessão, mas é uma discussão que acho importante ter. Principalmente numa altura em que, na profissão de ator, está tudo muito misturado… já nem digo banalizado, as coisas estão muito confusas. Em que sentido? Não vale a pena gastarmos muito latim para explicar o que quero dizer. É tal e qual o que estou a dizer: o significado de ser ator tem, neste momento, uma definição um bocadinho vaga. As pessoas que se dedicam, há tantos anos, a esta profissão têm a obrigação de dissecar o seu próprio trabalho e de estimular, assim, o resto da comunidade. Precisamos de estímulos que nos obriguem a reinventarmo-nos.
Esta é uma peça aparentemente sobre crianças, mas, no final de contas, é sobre os adultos. O que mostra de nós? Uma situação de guerra, seja em 1945, em 1974 ou em 2020, de perigo, de limite, de fome iminente, de medo, não é muito distante da nossa situação atual. Por isso, inventámos um playground mais urbano, em que as crianças estão abandonadas, porque é isso que acontece nestas situações-limite. O retrato que Dennis Potter faz de nós – e nós, atores desta peça e eu, também fazemos, porque empurramos o texto para uma linha mais violenta do que a original – reflete o nosso sentir em relação à sociedade… Uma sociedade com muito medo, só, desorientada, e que age empurrada por esses impulsos: com violência, crueldade, surdez e cegueira. Não é uma sociedade perdida, é uma sociedade que criou muitas máscaras. E é isso que os personagens aprendem, nesta peça: estão o tempo todo a falar das máscaras dos adultos e, no final, percebem que, para sobreviverem, têm de pôr uma máscara – a da mentira. A sociedade que criámos para os nossos tempos modernos só pode sobreviver usando esses recursos de máscaras, de mentiras diárias, de pequenas aldrabices. As nossas relações profissionais e familiares estão muito contaminadas por este círculo vicioso da utilização da máscara. Há muito pouco espaço para as pessoas viverem a verdade. Quando vivem a verdade, rapidamente são encurraladas no espaço dos loucos e dos deprimidos pela própria sociedade. Porque optaram por tornar tudo mais violento que o original? O texto é igual, mas evitei adocicar. Ao entrarmos no registo em que os atores não fazem de queridos nem de crianças amorosas e levam os impulsos, claramente identificados na peça, ao extremo da sua escala, imediatamente a crueldade, o medo e a violência transparecem. O texto foi escrito há mais de 30 anos. Continua a fazer sentido trazê-lo a palco? O Dennis Potter escreveu sobre a sua infância, mas, ao escrever aquilo, estava a fazer um comentário à política da sua época, à política da Thatcher. Não era completamente inocente o comentário à atualidade de quando escreveu… Da mesma maneira que trazê-la agora para cena não é completamente inocente…
É, de certa forma, uma afirmação política sua? Não tenho essa pretensão, honestamente. Sinto mais que os atores são esponjas e espelhos… Mas pretende-se dizer alguma coisa, quando se traz esta peça para o palco, hoje… Acho que sim… É uma crítica, uma chamada de atenção? Todas as peças são uma chamada de atenção. E é por isso que nem sempre é fácil vir ao teatro. O teatro é sempre uma chamada de atenção, um olhar para nós, seres humanos, comunidade, sociedade. Defendo que isso pode ser feito de uma maneira lúdica, não tem que ser uma grande chatice, mas também defendo que não deve ser vazio, nem inconsequente nem gratuito. Daí não ser inocente… Acho, porém, que não vale a pena dizer mais, também devo dar às pessoas espaço para elas próprias refletirem sobre a peça e sentirem coisas diferentes. A peça é tão clara que não há muito que possa dizer que não se torne redundante e quase cliché. E acreditou ser importante encená-la, nesta altura… … não me demitir da minha responsabilidade, sim. Uma ação política seria se quisesse marcar uma posição política, e não estou interessada nisso. Mas recuso-me a demitir-me da minha obrigação cívica. Principalmente como artista, atriz, sou uma figura ativa numa comunidade e isso acarreta responsabilidades, claro. Como tem reagido ao tratamento dado à cultura, nestes tempos de chamada crise? Os artistas não vão morrer. Quem não vai poder ter acesso a cultura, sim, vai sofrer muito. E isso paga-se, mais tarde ou mais cedo. Fico triste… Não há comentários nem palavras que abranjam a dimensão do disparate. Disse que não se demite da sua obrigação cívica. Foi votar nas eleições presidenciais ou fez parte da maioria desiludida que ficou em casa? … da maioria que não deixaram votar, porque não tinha cartão de eleitor? Nem todos se abstiveram por essa razão… Não, uma pessoa ou não vai porque não pode mesmo ou porque é irresponsável. Se uma pessoa quer marcar uma posição, vota em branco. E quando falo dos que não podem refiro-me aos que estão doentes, não têm dinheiro para apanhar o transporte, trabalham três turnos por dia, acumulam empregos ou não os têm… Já viveu em Londres. Nesta altura, sair de Portugal é opção? Não me querem cá?! [Risos.] Gosto muito de viver em Portugal, com todas as idiossincrasias que este país possa ter. E, por contraditório que pareça este meu sentir, gosto mesmo muito de cá viver, de ter cá a minha família, gosto do trabalho que tenho desenvolvido cá, estou muito grata por isso, considero-me uma pessoa com muita sorte. A crise financeira, ideológica e por aí fora, não é uma situa-ção que esteja limitada às fronteiras de Portugal. É um estar quase global. E não é saindo de cá que me vou sentir no paraíso – o paraíso, construímo-lo onde estamos. Fazemos o melhor que podemos, onde estamos. Não há fuga… Devemos ser exigentes, mas não podemos ser intolerantes. A aceitação é um caminho para a maturidade.