Se o senhor Hullot não existisse tinha que ser inventado. Jacques Tati morreu em 1982 deixando-nos cerca de uma dúzia de maravilhosos filmes e personagens que ainda hoje nos fazem rir. Deixou também um argumento inédito, O Mágico, que nunca antes tinha chegado ao cinema, por um motivo muito simples: aparente sem Jacques Tati não há Senhor Hullot. Quem poderia desempenhar tão peculiar e árdua tarefa? Roberto Benigni ou John Clease? Por mais inspirado e genial que fosse o ator ficaria sempre aquém. Por isso é que se o Senhor Hullot já não pode existir tem que ser inventado, nem que seja sob a forma de personagem de desenho animado. Foi o que Sylvian Chomet fez. Admiravelmente.
Há um momento em que o Senhor Hullot animado entra numa sala de cinema, e cruza-se com o verdadeiro senhor Hullot de O Meu Tio. É uma espécie de espelho, de confronto consigo mesmo, em que o realizador, Sylvain Chomet, esclarece, de uma vez por todas, não fosse alguém ter dúvidas, as suas intenções. A citação, momento alto e caricato do filme, nem era necessária para o nosso entendimento. O verdadeiro achado é que Tati/Hullot só poderia ganhar uma vida póstuma enquanto desenho animado. E é isso que torna este filme perfeito no formato e conceção. Um Tati fora de época, de pertinência não datada. Apesar de, ou reforçado por, a fascinante animação de Chomet, autor de Belleville Rendez-Vous, O Mágico é sobretudo um filme de Jacques Tati. E os apreciadores do cinema daquele génio do humor só têm que agradecer a humildade de Chomet, que colocou todo o seu talento ao serviço do mestre, nunca se querendo exibir ou sobrepor. E assim funciona.
A personagem é subtilmente… desenhada. Um ilusionista desajeitado, com um coelho insubordinado, que se escapa da cartola, e lhe troca as voltas em palco. Que é também um homem bem intencionado que não resiste às mudanças dos tempos. Talvez como o próprio Tati se desenhasse, na sua ironia para com o futuro e para com a sociedade tecnológica. Este é um mago francês em trânsito, que parte para a Escócia, em que encontramos desenhada, em todo o seu cinzento esplendor, a histórica cidade de Edimburgo. Há um mundo que não o compreende e ele não é compreendido pelo mundo.
Chomet adaptou o mágico à animação sem qualquer tipo de cedência. Diz-se isto, porque apesar do forte sentido de humor, este é também uma história triste, que o animador deixou ficar assim, apesar de reduzir comercialmente o público-alvo. É transversal à obra de Tati uma certa carga nostálgica, que se confunde e tantas vezes se opõe à tecnologia. Assim acontece em Há Festa na Aldeia, n‘O Meu Tio ou n’As Férias do Senhor Hullot. Há uma imagem nostálgica de passado e o retrato de uma personagem sozinha, e incompreendida, no seu estilo caricatural. Aqui acontece o mesmo. A personagem pouco ou nada fala. Há um humor físico, do seu jeito alto e desengonçado, e as situações que cria. Raramente age intencionalmente, apenas reage às circunstâncias em que se cria Quando se aproxima da rapariga, ou quando a rapariga se aproxima dele (este senhor Hullot é demasiado distraído para se aproximar de alguém), insere-se uma história de amor pudica anacrónica. Os gestos tornam-se todos comoventes e apaixonantes. E de baixo da camada do humor, ergue-se uma outra, profundamente comovente e enternecedora, que nos faz sorrir e nos compadece.
A partir daí, tal como em Hullot, os risos dos espetadores ganham uma essência de ternura, como só Tati sabia fazer. E o filme torna-se grande, no paradigma de emoções tatiano, que é a capacidade de nos fazer chorar numa comédia.
No caso, há mesmo uma mensagem realista que nos demove e quase nos desalenta. O coração partido e a mensagem: “Os mágicos não existem”. É um Tati desiludido, no final da vida. Mas nós recusamo-nos a acreditar no mundo crescido, de pessoas sérias, comprometidas, imagens reais, da vitória da realidade sobre a fantasia. Esperamos que o mágico ainda nos iluda. Só que o truque fica curto, à imagem do seu coração minguado. Contudo os mágicos existem, sim. Senão não havia cinema. Senão não havia Tati.