Sempre se disse que era preferível uma boa imitação do que um mau original. O que vale é que estas frases feitas admitem sempre um contraditório. Porque O Ilusionista (estreia-se, quinta, dia 23), uma animação, do premiadíssimo Sylvain Chomet (Belleville Rendez-Vous, 2003) é simultaneamente uma boa imitação e um bom original. Baseado num argumento nunca filmado, escrito em 1956, esquecido no baú de Jacques Tati, o filme traz-nos todos os tiques, as subtilezas, a insustentável leveza, as pequenas sagacidades do inimitável Mr Hulot – e aquele seu humor tão elegante que não autorizava gargalhadas transbordantes, apenas um sorriso brando. Mas no meio do mimetismo da personagem e da acção, está algo completamente original e refrescante, em que cada frame é um exemplo de bom gosto, carregado de pormenores narrativos e visuais requintados. Aliás, já era esta a marca do realizador Chomet, em Belleville…: uma certa melancolia, uma certa negritude, mas uma ironia fina. Não terá sido por acaso que foi após ter a assistido ao filme das excêntricas velhotas, estrelas decadentes do music-hall dos anos 30 que se alimentam nos pântanos parisienses e da tenaz Madame Souza, que Sophie Tatischeff, a filha mais nova de Tati (entretanto falecida) entregou ao realizador o misterioso argumento. Chomet pedira autorização para utilizar no filme um excerto do Há Festa na Aldeia e a herdeira terá ficado muito bem impressionada com o resultado.
Quando há pouco se falava em imitar o inimitável Tati não se tratava apenas um jogo de paradoxos. Pôr um actor real a imitar um mimo seria um contra-senso, mais do que ridículo: seria uma caricatura. Em animação tudo é permitido. Não há orçamentos que limitem os mais incríveis efeitos especiais. Nem sentido do ridículo que possa travar o regresso dos gestos delgados de Tati. Tati está de volta, e mais carne e osso do que isto é impossível.
Sempre em tons pastel, nas já tão desenjoativas duas dimensões e passada na “desolarenga” Escócia, onde a meteorologia fustiga, os ventos são hostis e bravias as marés, o filme segue a travessia de um ilusionista francês, parco em palavras mas rico em gestos e contemplações, e que já fez o seu tempo. Tem a mesma postura, alta, tímida e hesitante do verdadeiro Tati e um coelho branco temperamental que gosta mais de salsichas do que de cenouras. Ao mesmo tempo há uma menina escocesa e provinciana, com muito pouco mundo, mas cheia de vontade de o descobrir. A história desenvolve-se a partir do cruzamento destes dois seres, ele já no ocaso da desilusão, ela na ingenuidade da descoberta. No mundo dos anos 50 já ninguém se deslumbra com malabarismos de mãos, truques de lenços e baralhos de cartas. O ilusionista que enfada as audiências tem de aceitar trabalhos menos dignificantes em teatros falidos, nas montras das lojas ou numa garagem. Porque não quer falhar o último número, porventura o seu melhor truque de ilusionismo: não roubar as ilusões àquela pequena fã.
O tio Hulot (pode chamar-se-lhe assim) está a envelhecer. A menina está a crescer. Daí a nada é mulher. A relação entre os dois é paternal, de tio para sobrinha. Diz-se que Tati terá escrito este guião para se redimir do afastamento da sua filha ilegítima que nunca assumiu nem viu crescer. Supostamente o décor pensado pelo singular actor e realizador era a Checoslováquia, Chomet parece ter achado que Praga tinha magia a mais para uma história de mágicos. E situou-a entre a sempre brumosa Escócia, com a gélida até aos ossos Shetland, nem bafejada pelo bom tempo nem pelos novos tempos. E o perfil húmido e pardo de Edimburgo, desenhado entre as neblinas à distância. Para Chomet fazer renascer Tati através da animação faz todo o sentido. Ele próprio tinha um grande sentido gráfico e estilizado. Se calhar, se soubesse desenhar, vaticina, teria feito animação.