Há uma carroça que se arrasta a transbordar de decrepitude e anacronismo por uma Londres contemporânea. Desengonçada como o Castelo Andante de Hayao Miyazaki. Leva lá dentro uns saltimbancos e tudo está sujo, provecto, maltrapilho, escavacado, grotesco. É a assinatura Gilliana: ele não acha que os filmes devam ser “razoáveis”. Também dentro desta carripana andrajosa há um velho mágico que já não sabia a idade, um anão de 50 centímetros e um espelho que tem um reverso, e que é um portal para os imaginários alheios. E aos primeiros minutos do filme já vemos que o génio de Terry Gilliam está fora da garrafa. Delirantemente desgovernado, sem ninguém a demandar-lhe os desejos nem a esfregar-lhe a lamparina.
O génio do mais outsider e o único americano dos ex-Monty Python está mais do que desenfreado, ocupado a dinamitar a terra do nunca, ou a enveredar pelos mais extravagantes caminhos – sem estrada de tijolo amarela. Sempre foi uma marca deste realizador, famoso por rejeitar projectos aliciantes de Hollywood, e por se manter obstinadamente na sua. E por ter levado quase ao limite da paciência os fleumáticos colegas, quando co-dirigiu com Terry Jones, O Cálice Sagrado, em 1975. O ex-Phyton que se tornou conhecido pelas suas animações de recortes bizarras, continua a embarcar em objectos cinematográficos arrojados ( e fantasistas como Os Irmãos Grimm, em 2005, ou As Aventuras do Barão Munchausen, em 1988), e leva, mais uma vez a bordo, Tom Waits no papel de Diabo sempre disposto a fazer apostas, por mais uma alma ou uma dose extra de imortalidade e Heat Ledger, agora no seu derradeiro papel. E há certo um gosto amargo ao pensar-se que a chegada às salas de O Homem que Queria Enganar o Diabo (estreia-se hoje, dia 25), não terá a ver com um voyeurismo mórbido da interpretação póstuma – isto, a avaliar pela forma como certos filmes menos poder de atracção magnética de audiências têm passado directamente para DVD, no nosso país.
Mas não. O Homem que Enganou o Diabo entrou no circuito comercial pelo ecrã grande. E antes assim, porque pode ser que desbloqueie um outro projecto de Gilliam, megalómano e emperrado desde 2001, O Homem que Matou Dom Quixote, porque o actor Jean Rochefort sofreu um problema de coluna que o impediu de voltar a montar a cavalo.
Waits como diabo é um deus
A legião de fãs de Heath Ledger podem até ficar desiludida por vê-lo numa das suas grandes últimas cenas, vestido de arlequim, com um nariz à Comedia D’El Arte, a depenar uma galinha morta de pescoço pendente, a suster a respiração, enquanto o misterioso Dr Parnassus (Christopher Plummer) lhe põe um ridículo capacete na cabeça. Mas não há dúvida de que Ledger, além de ser um elemento-chave para o financiamento do filme, imprime carisma àquela underland, bastante mais sombria do que da Alice de Burton. O realizador e a equipa ficaram devastados com a morte do actor, por overdose medicamentosa, a 22 de Janeiro de 2008. Suspenderam-se as filmagens sine die. Até que surgiu a ideia de substituir Ledger não por um, mas por três actores: Johnny Depp, Jude Law e Collin Ferrel. Escolhidos justamente por serem amigos pessoais de Ledger. Assim a transição teria tanto de profissional como de afectivo. Mais difícil foi conseguir Deep, já comprometido com Michael Mann, em Inimigos Públicos. Gilliam teve acesso a ele, apenas por um dia e três horas.
No final, tudo aquilo resulta. Ninguém estranha que naquela mundo tresloucado, a personagem de Tony assuma quatro faces. No meio de todo o non-sense, esse é um pormenor negligenciável. Afinal, nem todos os filmes têm o imenso privilégio de possuírem um espelho mágico no guião: do lado de lá tudo pode acontecer.
Entretanto, um dos produtores do filme morreu de cancro, o próprio Gilliam foi atropelado por um carro e partiu uma vértebra: “They got the star, the producer, and they were going for the director, and the fuckers failed on the last one. Whoever they are…”