“Olhe que não, olhe que não!” O debate entre Soares e Cunhal que marcou o pós-revolução de 1974

Debate na RTP 1975 entre Mario Soares e Alvaro Cunhal

“Olhe que não, olhe que não!” O debate entre Soares e Cunhal que marcou o pós-revolução de 1974

O debate da RTP só foi noticiado na véspera, e em primeira mão, pelo vespertino A Luta. Previsto para demorar, “no máximo, duas horas” – como advertiram os moderadores, logo a abrir –, prolongou-se por quase o dobro: precisamente três horas, 40 minutos e 41 segundos, sem contar com o intervalo, aproveitando uma pausa obrigatória para a mudança das bobinas em que ficou gravado para a História – não apenas da televisão, mas da própria democracia.

Segundo o alinhamento do programa, este começou exa­tamente às 22 horas. Antes, e após o Telejornal das 20h30, que se estendeu, como de costume, por apenas 30 minutos, surgira nos ecrãs o secretário de Estado da Administração Escolar, o capitão-de-fragata Mário José Aguiar, no âmbito de “uma campanha de esclarecimento público iniciada por membros do governo”, como explicou o pivô de serviço, o jornalista António Santos. Seguira-se o habitual bloco de publicidade, de três minutos e meio, com nove anúncios, de marcas como Gillette, Woolmark, Timex, Maggi e Sagres.

Às 23h24 fez-se um único intervalo. Com a duração de cerca de oito minutos e meio, foi ocupado com pouco mais de dois minutos para sete curtos anúncios (Knorr, Nilfisk, Bic, Schweppes, CUF…) e com o oráculo da programação do dia seguinte, lido em off pelo locutor Eládio Clímaco. A segunda e última parte iniciou-se às 23h32 e prolongou-se, ininterruptamente, por quase duas horas e meia. Quando terminou, passava da 1h50, apareceu nos ecrãs um slide com o dizer “Exija fabricado em Portugal”. Sendo demasiado tarde para a última edição do Telejornal, voltou a ouvir-se a voz de Eládio Clímaco, desta feita para encerrar a programação e dar por finda a emissão – uma invulgarmente longa emissão, que estivera no ar durante quase 13 horas e meia.
Apresentado como uma “edição especial” do programa Responder ao País, surgiu nos ecrãs com o título “Frente a Frente… Mário Soares. Álvaro Cunhal”. A moderação foi entregue a José Carlos Megre e a Joaquim Letria, que apareceram perante os telespectadores a fumar. José Carlos Megre chefiava o Departamento de Programas Políticos e Sociais, que tinha a responsabilidade por este programa; Joaquim Letria, por sua vez, fora até há bem pouco tempo diretor-adjunto (para programas de atualidade) da RTP e era um dos jornalistas portugueses mais conhecidos e prestigiados. Nos televisores, ainda a preto e branco, Soares surgiu do lado esquerdo e Cunhal à direita, enquanto numa terceira mesa, sentados, estavam os dois moderadores, Letria e Megre, a quem, hierarquia oblige, competiu abrir e encerrar o programa. Ambos desempenharam um papel secundário: o palco pertenceu por inteiro aos dois líderes partidários. Ao todo, limitaram-se a fazer oito perguntas: duas na primeira parte e as restantes seis na segunda. Bastante mais experiente na condução de entrevistas, Letria foi quem mais perguntas colocou: sete, limitando-se Megre praticamente a tentar pôr alguma ordem no debate. Com quase uma hora de discussão já decorrida, e ainda em torno da primeira pergunta, Megre esboçou um pedido: “Já agora, gostávamos de ter possibilidade de fazer mais algumas perguntas.” Mas não era necessário, como os dois moderadores disseram, quase em uníssono, no princípio da segunda parte, reconhecendo que “é quase um crime interromper esta conversa”.

Frente a frente O primeiro debate a ser emitido na televisão portuguesa, ainda hoje com o recorde do mais longo de sempre: 3h40. Foi moderado por José Carlos Megre e Joaquim Letria



A gafe da noite partiu de José Carlos Megre, que, por cansaço e atrapalhação, a meio do programa tratou o secretário-geral do PCP por “Dr. Mário Cunhal”… Já a frase da noite pertenceu a Álvaro Cunhal: “Olhe que não, olhe que não!”, foi a forma como o líder comunista contrariou ou comentou, meia dúzia de vezes, afirmações ou acusações do adversário. O primeiro “olhe que não!” fez-se ouvir à meia hora, numa observação crítica, acompanhada de um sorriso de algum desdém, à pesada acusação que Soares acabara de lançar, a de que o PCP “quer transformar este país numa ditadura”.

Curiosamente, a expressão “olhe que não, olhe que não” – que entrou rapidamente no vocabulário político corrente e passou a estar colada à simples evocação deste debate televisivo – escapou, na altura, a todos os órgãos de informação escrita. O primeiro a destacá-la terá sido Manuel Sertório, numa análise política do debate publicada 11 dias depois no semanário O Jornal.

A realização do programa pertenceu a Herlânder Peyroteo, que aos 21 minutos experimentou dividir o ecrã em duas partes: a metade do lado esquerdo com Soares e a do direito com Cunhal. Estava encontrada a fórmula que melhor captava a vivacidade do confronto, a ponto de não mais a largar. Assim se percebeu melhor o jogo fisionómico de ambos, as pausas, os sorrisos e os esgares, o frequente jogo de braços de Soares, o uso constante da caneta por parte de Cunhal, as interrupções do socialista, os protestos do comunista, o constante jogo de ataque e de defesa de ambos. Eram quase duas horas da manhã de dia 7 quando José Carlos Megre terminou o programa com um seco “boa noite a todos”.

Entre o debate na Antenne 2 e o da RTP haviam transcorrido apenas quatro meses. Só que foram meses alucinantes, em que muita coisa mudou no País! Se em julho Soares e Cunhal ainda eram colegas do IV Governo, como ministros sem pasta, agora nenhum deles integrava o VI Governo e liderava, cada um deles, um bloco político em oposição frontal, por vezes mesmo a raiar a iminência de uma guerra civil. Se em julho apresentavam alguma proximidade, ainda que num crescendo de divergências, agora estavam em choque: viam-se mutuamente como adversários, mesmo inimigos. Se o debate em francês e para um público estrangeiro fora deveras polido e diplomático, agora, em português e para os portugueses, era a altura de falar claro, alto e bom som. Tendo quase o País inteiro agarrado ao televisor, havia que aproveitar a oportunidade, não para conquistar votos (não era disso que se tratava) mas para esclarecer e convencer, derrotar o oponente e, acima de tudo, mobilizar todos os potenciais apoiantes, porque ainda havia grandes batalhas a travar, sendo que um dos palcos principais eram as ruas e praças de Portugal.

No plano formal, a discussão manteve-se sempre num tom elevado e de mútuo respeito, com ambos a tratarem-se por “doutor”. Mas o debate tornou claras as enormes diferenças e o fosso que separava os dois dirigentes e os seus partidos. “O diálogo terminou em posições irredutíveis”, reconheceu o diretor de A Luta, Raul Rêgo. Na mesma linha, e perspetivando o futuro, Portela Filho escreveu no Jornal Novo: “Se aquela é a fratura, quatro horas de exposição de fratura, de consolidação de fratura, de pedagogia de fratura, vão consolidá-la.” Inteiramente diferente foi a leitura, no Expresso, de Marcelo Rebelo de Sousa, para quem o debate “não fechou a porta ao diálogo PS-PCP, antes se abriu um futuro caminho de progressiva troca de pontos de vista”.

Memória coletiva No livro Olhe que não, Olhe que não! são analisados os dois grandes debates televisivos entre Soares e Cunhal, na RTP e na Antenne 2 francesa

Mais na Visão

Mais Notícias

Príncipe William revela como se encontra a princesa Kate

Príncipe William revela como se encontra a princesa Kate

25 de Abril, 50 anos

25 de Abril, 50 anos

25 peças para receber a primavera em casa

25 peças para receber a primavera em casa

Tesla continua a dominar vendas de elétricos em Portugal

Tesla continua a dominar vendas de elétricos em Portugal

João Abel Manta, artista em revolução

João Abel Manta, artista em revolução

Ratos velhos, sistema imunológico novinho em folha. Investigadores descobrem como usar anticorpos para rejuvenescer resposta imunitária

Ratos velhos, sistema imunológico novinho em folha. Investigadores descobrem como usar anticorpos para rejuvenescer resposta imunitária

Montenegro diz que

Montenegro diz que "foi claríssimo" sobre descida do IRS

Teranóstica: O que é e como pode ser útil no combate ao cancro?

Teranóstica: O que é e como pode ser útil no combate ao cancro?

Conheça os ténis preferidos da Família Real espanhola produzidos por artesãs portuguesas

Conheça os ténis preferidos da Família Real espanhola produzidos por artesãs portuguesas

JL 1396

JL 1396

Os melhores sapatos para usar com calças de ganga flare

Os melhores sapatos para usar com calças de ganga flare

Um novo estúdio em Lisboa para jantares, showcookings, apresentações de marcas, todo decorado em português

Um novo estúdio em Lisboa para jantares, showcookings, apresentações de marcas, todo decorado em português

A meio caminho entre o brioche e o folhado, assim são os protagonistas da Chez Croissant

A meio caminho entre o brioche e o folhado, assim são os protagonistas da Chez Croissant

Em “Cacau”: Regina espanca Filó e Justino expulsa a empregada de casa

Em “Cacau”: Regina espanca Filó e Justino expulsa a empregada de casa

Cor de laranja na sala, vitalidade e energia em casa

Cor de laranja na sala, vitalidade e energia em casa

VISÃO Se7e: Entre jardins, exposições e mesas, a ver os comboios passar

VISÃO Se7e: Entre jardins, exposições e mesas, a ver os comboios passar

Passatempo: ganha convites para 'A Grande Viagem 2: Entrega Especial'

Passatempo: ganha convites para 'A Grande Viagem 2: Entrega Especial'

Protótipo do Polestar 5 'abastece' 320 quilómetros de autonomia em apenas dez minutos

Protótipo do Polestar 5 'abastece' 320 quilómetros de autonomia em apenas dez minutos

Em “Cacau”: Simone ameaça Cacau e vira-a contra Regina

Em “Cacau”: Simone ameaça Cacau e vira-a contra Regina

Toca a dançar!

Toca a dançar!

Amigos e familiares no último adeus a Luiz Andrade

Amigos e familiares no último adeus a Luiz Andrade

Princesa Charlotte celebra 9.º aniversário

Princesa Charlotte celebra 9.º aniversário

Portugal faz bem: Margarida Lopes Pereira cria objetos a partir de esponja reciclada

Portugal faz bem: Margarida Lopes Pereira cria objetos a partir de esponja reciclada

Pagamentos com cartões explicados a

Pagamentos com cartões explicados a "principiantes"

25 exposições para ver em maio, em Lisboa e no Porto

25 exposições para ver em maio, em Lisboa e no Porto

O futuro começou esta noite. Como foi preparado o 25 de Abril

O futuro começou esta noite. Como foi preparado o 25 de Abril

Google proíbe anúncios de serviços que permitem criar deepfakes pornográficas

Google proíbe anúncios de serviços que permitem criar deepfakes pornográficas

Em “Senhora do Mar”: Abel quase apanha Maria e Pedro a fazerem amor

Em “Senhora do Mar”: Abel quase apanha Maria e Pedro a fazerem amor

Quatro vozes da língua portuguesa, de Machado de Assis a Maria Andresen

Quatro vozes da língua portuguesa, de Machado de Assis a Maria Andresen

Salgueiro Maia, o herói a contragosto

Salgueiro Maia, o herói a contragosto

7 looks que vão contra as tendências e funcionam

7 looks que vão contra as tendências e funcionam

Observatório astronómico bate recorde de altitude e abre portas após 26 anos

Observatório astronómico bate recorde de altitude e abre portas após 26 anos

Regantes de Campilhas querem reforçar abastecimento de água e modernizar bloco de rega

Regantes de Campilhas querem reforçar abastecimento de água e modernizar bloco de rega

Decoração: a liberdade também passa por aqui

Decoração: a liberdade também passa por aqui

ESG Talks percorrem o País e chegam a Faro a 23 de maio

ESG Talks percorrem o País e chegam a Faro a 23 de maio

Sexo na gravidez:

Sexo na gravidez: "Manter-se sexualmente ativa é uma coisa boa para ajudar no processo de nascimento"

MAI apela à limpeza dos terrenos rurais

MAI apela à limpeza dos terrenos rurais

Os livros da VISÃO Júnior: Para comemorar a liberdade (sem censuras!)

Os livros da VISÃO Júnior: Para comemorar a liberdade (sem censuras!)

Cláudia Vieira e as filhas em campanha especial Dia da Mãe

Cláudia Vieira e as filhas em campanha especial Dia da Mãe

TAG Heuer Formula 1 acelera para 2024 com Kith

TAG Heuer Formula 1 acelera para 2024 com Kith

10 sugestões de última hora para oferecer Beleza no Dia da Mãe

10 sugestões de última hora para oferecer Beleza no Dia da Mãe

De Zeca Afonso a Adriano Correia de Oliveira. O papel da música de intervenção na revolução de 1974

De Zeca Afonso a Adriano Correia de Oliveira. O papel da música de intervenção na revolução de 1974

Caras conhecidas atentas a tendências

Caras conhecidas atentas a tendências

Tesla continua a dominar vendas de elétricos em Portugal

Tesla continua a dominar vendas de elétricos em Portugal

Energia para Mudar: Açores a caminho da independência energética

Energia para Mudar: Açores a caminho da independência energética

Parceria TIN/Público

A Trust in News e o Público estabeleceram uma parceria para partilha de conteúdos informativos nos respetivos sites