Manda a moral a defesa intrínseca dos mais frágeis. Este manifesto propõe-se à defesa da Tasca, instituição que há muito serve os desígnios do povo.
Creio que o momento é de tal forma grave que impele a uma mobilização total de todas as forças políticas e da sociedade civil que as modistas se ponham a coser uniformes para que os jovens entrem pelas cidades deste Portugal fora, declarando a salvação nacional neste departamento que a todos é tão querido.
A noite anunciava-se feliz, quando por volta das 21 horas dou entrada num estabelecimento comercial circunjacente à Basílica da Estrela e Jardim de mesmo nome. Ora, os ainda estudantes e jovens trabalhadores, que enchiam a sala, comungavam do mesmo sentimento e cantavam em uníssono, mesmo se nenhuma nota se estivesse a ouvir, a alegria partilhada.
Dirijo-me ao balcão para cumprimentar os anfitriões e pedir uma cerveja tal flûte de boas-vindas. Isabel estende-me as duas mãos por cima do balcão envidraçado com um sorriso de uma honestidade e bondade sem igual, enquanto gritava para a cozinha para anunciar a minha muito humilde chegada. – Ó Manel! Olha quem cá está!
Na impossibilidade de encostar a minha bochecha à sua, levei as suas mãos que ainda segurava, à minha cara, transformando o gesto no abraço possível. O Sr. Manuel surgindo do pórtico da cozinha, deu início ao bailado de subtileza e elegância comparável a um de Tchaikovsky – do aperto de mão firme passou para o copo de patrocínio oligopolístico, formando um arco que o unia à máquina de pressão, por baixo do qual Isabel passou para na cozinha entrar novamente. Estava demasiado ocupada para se preocupar com protocolos diplomáticos de receção de chefes de estado estrangeiros.
Procedo a sentar-me, na mesa onde um cesto de pão com dois ou três adereços quadrados no pires adjacente sobre uma toalha de papel jaziam desde o início dos tempos.
Isabel, emerge da copa e com um ar de loba romana que alimentava as suas crias e anuncia com um ar displicente – Tomem lá os bitoques que já se faz tarde! – É que nem tivemos hipótese. Oh, mas estava um repasto de suspeita criação transcendente. O arroz solto que repousava sobre o molho de um bife cozinhado a alho, juntamente com as batatas que lhe faziam pandã. O ovo a cavalo aparecia no nevoeiro do bife ainda a recuperar das altas temperaturas a que tinha sido sujeito. As cervejas chegavam às dezenas no equilíbrio prodigioso de tabuleiro do Sr. Manuel, que as perfilava diante de nós como se de honras militares fossemos dignos.
Os risos cantavam, difusos pelo eco da sala, contavam-se mentiras e queixumes do estado da nação, mas tudo no colo terno de uma juventude despreocupada. A trança da conversa escorria pelas costas da mesa entre engates manhosos que o destino colocou frente a frente. “Já entraste no estágio?” – ouvia-se “Oh! pede mais uma para mim” “Calma. Quem quer?” – 4, 5, não 6 braços efusivamente no ar qual crianças a quem perguntam se podem apagar o quadro. “Sim, o Montenegro prestava serviços jurídicos antes de ir dormir em S. Bento” – lembrava ironicamente um lado da mesa- “A tua sorte é que o Porto não está a jogar nada” recordava o outro. Pratos recolhidos, prolongamento em vias de acabar, era preciso preparar as grandes penalidades.
Chegam à mesa os copos em forma de pera, qual Botero, com as pedras de gelo a brilharem por dentro. Não tínhamos alternativa, pois é conhecido na sabedoria popular o famoso ditado: “Se a vida te dá limões, faz amarguinha”. Tal qual a última grande penalidade da final de um mundial, as metades de limão estavam preparadas para serem trucidadas, esfoladas e sacrificadas nas membranas interiores dos copos. Acabando, assim, triunfalmente a sua vida útil, num néctar de fazer inveja a Baco com a amêndoa amarga. O amargo e o ácido dançavam sinfonias nas pupilas gustativas, despreocupados e inconscientes, arrefecidos pelo gelo, escorriam pela garganta com direção à alma.
Alma essa que é salva cada vez que se entra numa tasca, que se reúnam batalhões por essas cidades fora! Que não se dê descanso no combate a essas hamburguerias com os seus empregados de avental preto, cozinhas envidraçadas e barbas milimetricamente cortadas, decoradas com tubos de ventilação e outros elementos faux-négligé! Não se quebra o acordo tácito que as batatas vêm com o hamburger e não se pagam à parte. Não me conquistam com as vossas pomposas e arrogantes mayonnaises artesanais e pseudo-caseiras. Que não reste brunch e seu abacate de pé! Que se ergam bandeiras e desfilem cortejos. Que se lute por esta instituição, a Tasca, que se lute até às consequências últimas, que se lute até à última tasca.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.