Durante muito tempo, quando tinha de preencher um impresso, escrevia “empregado bancário” no campo da profissão. Agora, põe “gestor”. Mas poderia colocar presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, da Caixa Geral de Depósitos, comissário-geral da Europália ’91, diretor-geral na Comissão Europeia, ministro nos governos provisórios e constitucionais, presidente da SEDES, administrador de empresas ou advogado. Emílio Rui Vilar, 84 anos, foi e fez tudo isso e ainda algumas coisas mais. “A vida foi pródiga em dar-me oportunidades, em colocar-me desafios, que eu aceitei, mesmo se porventura eram demasiado pesados para as minhas forças”, diz. Hoje, é senior advisor da Gulbenkian, onde mantém um gabinete. Foi lá que conversou com a VISÃO sobre o livro-entrevista Memórias de Dois Regimes, em que recorda a infância e adolescência numa família da pequena burguesia do Porto, os estudos universitários, na Faculdade de Direito, em Coimbra, a estreia na organização de atividades culturais, a ida para Lisboa e a participação política na transição do marcelismo para a democracia. Ao desfiar as memórias desse tempo de excessos, assume-se como protagonista da mudança e testemunha de um tempo revolucionário que viveu por dentro – mas que não era bem o seu, já que sempre se considerou um social-democrata.
Antes do 25 de Abril, acreditava numa transição para a democracia com Marcello Caetano ou antevia já uma revolução? Como é que, no início dos anos 70, olhava para o futuro?
A queda física e política de Salazar abriu um clima de grande descompressão e permitiu que se prefigurassem várias hipóteses de transição. Nas memórias, o ex-Presidente Américo Tomás mostrou-se surpreendido com a forma tão pacífica como decorreu a transição do poder para Marcello Caetano. Eu também me pergunto como é que nenhuma força política, designadamente o Partido Comunista (PCP), que era a mais organizada, não fez nada. É evidente que havia um enorme bloqueio por resolver na sociedade portuguesa, que era a guerra no Ultramar, mas recordo-me de um discurso de Marcello Caetano, em setembro de 1970, que dizia: “Não estamos no Ultramar por razões históricas; a História faz-se todos os dias. Não estamos no Ultramar para defender o Ocidente, porque o Ocidente tem muita capacidade para se defender. Não estamos no Ultramar por razões económicas, porque o Ultramar é um peso para a economia da metrópole. Estamos no Ultramar porque há portugueses pretos e brancos que precisam de ser defendidos.” Este discurso foi interpretado como possibilidade de uma solução negociada, mas o próprio Marcello, passados poucos meses, pressionado pelos setores mais radicais do regime, foi a Santa Margarida [campo militar] e disse exatamente o contrário.