Pouco mais de 48 horas tinham passado desde o início da ofensiva militar russa, quando o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, apelou aos cidadãos dos países estrangeiros para se juntarem às forças armadas ucranianas e lutarem contra aqueles que designou como “invasores do século XXI”. Numa mensagem de vídeo, Zelensky incitou a uma guerra em nome “da segurança na Europa e no mundo”.
Para agilizar o processo, o governo ucraniano criou um site, chamado Fight for Ukraine (Lutar pela Ucrânia), onde é possível fazer a “inscrição para a guerra” através de um processo simples de (apenas) sete passos.
Duas semanas depois, Kiev garantia que 20 mil voluntários e veteranos estrangeiros já tinham expressado o desejo em participar na designada Legião Internacional de Defesa Territorial, uma força que, entretanto, se encontra no terreno, sob comando da Direção de Inteligência do Ministério da Defesa ucraniano e do general Kyrylo Budanov.
Mas entre os cidadãos bem-intencionados que fazem fila para lutar pela Ucrânia, encontram-se alguns voluntários com ligações a grupos de extrema-direita e supremacistas brancos, que aproveitaram o apelo de Zelensky para rumarem à Ucrânia, com o principal objetivo de receberem treino e ganharem experiência de combate num cenário real de guerra.
Os governos e as autoridades de vários Países têm sinalizado um aumento da atividade de líderes da extrema-direita (principalmente norte-americanos e europeus), que, desde esse momento, passaram a promover, nas redes sociais – em particular no Telegram –, ações de recolha de fundos, recrutamento de combatentes e planos para a viagem até à linha da frente do conflito.
O “caso” português: nacionalistas divididos
Também o neonazi português Mário Machado viu neste conflito uma oportunidade. Desde o início da ofensiva militar russa, que o antigo dirigente de movimentos de extrema-direita – como os inativos Frente Nacional e Nova Ordem Social – tem publicado, quase diariamente, mensagens de ódio nas suas redes sociais. Aproveitando a (polémica) posição do PCP em relação à guerra, Machado chegou a anunciar, no Telegram, existir a intenção da extrema-direita portuguesa “preparar a invasão e destruição” das sedes daquele partido, passando a terminar os seus textos sobre a guerra na Ucrânia com a expressão “Morte ao comunismo”.
Seguindo a linha ideológica de “combate aos comunistas”, Machado iniciou uma recolha de fundos, conseguindo reunir um grupo de oito indivíduos (sete homens e uma mulher), que agora se preparam para rumar à Ucrânia (domingo, 20) – numa campanha que designou como “Operação Ucrânia 1143” (numa referência ao ano da assinatura do Tratado de Zamora) –, onde se vão juntar a uma milícia da extrema-direita ucraniana, em Lviv, noticiou o Expresso esta semana.
Mário Machado foi alvo de críticas de outros radicais por combater contra “o amigo” da extrema-direita europeia e ao lado do “judeu” Zelensky
A opção, no entanto, não tem sido consensual no seio da extrema-direita portuguesa, pois o “inimigo” de Machado, Vladimir Putin, tem sido, na realidade, ao longo dos últimos anos, o líder político mais “amigo” da extrema-direita europeia, financiando uma lista de políticos e partidos populistas e nacionalistas, onde se contam Marine Le Pen, Eric Zemmour, Matteo Salvini ou o partido Alternativa para a Alemanha (AfD), entre outros. Mais: Zelensky é judeu, e vários membros da extrema-direita portuguesa não aceitam a ideia de se lutar ao seu lado, apurou a VISÃO.
A discussão levou Mário Machado a ter de dar explicações, através de um áudio partilhado nas suas redes sociais, em que esclarece que esta “é uma ação a favor do povo ucraniano”, mas “não é contra o povo russo e muito menos (…) a favor de nenhum governo”. “Odiamos o Putin, e tudo aquilo que ele representa (…) mas o Zelensky não é um dos nossos”, diz, acrescentando que o presidente ucraniano – “um judeu”, destaca – “defende a narrativa dos governos traidores da União Europeia (UE)”. “Não estamos ao serviço de governos com os quais não nos identificamos”, assegurando que a sua participação no conflito vai acontecer “num pelotão” que não integra as forças armadas ucranianas.
Anticomunismo e oportunismo: o risco da extrema-direita transnacional
O politólogo José Filipe Pinto explica à VISÃO a participação da extrema-direita neste conflito, e as divergências entre quem ataca e defende Putin. O especialista em movimentos extremistas e populismo considera que estes combatentes têm duas motivações essenciais: a ideológica e a oportunista. E as suas prioridades (e metas) não passam, necessariamente, pela defesa da Ucrânia e dos ucranianos.
Por um lado, os movimentos de extrema-direita “têm uma dimensão ideológica que os faz olhar para a Rússia como uma potência ainda ligada ao comunismo, conotada com tudo aquilo que abominam, no que é uma reminiscência do combate contra a URSS, por outros ideais civilizacionais” – precisamente a linha defendida por Mário Machado.
Por outro, estes grupos “têm uma posição interesseira, aproveitando a ocasião para desenvolver aquilo que eles julgam ser os seus talentos” no palco de guerra. “Lutam não só pela ideologia, mas também por interesse imediato, que passa pela afirmação pessoal e coletiva como elementos indispensáveis para a mudança civilizacional que desejam concretizar”, diz.
Este conflito está a ser usado como rampa de lançamento para um movimento de extrema-direita transnacional
José Filipe pinto
Obcecados pelo militarismo e pela ordem, palavras-chave desta ideologia, muitos destes combatentes identificam-se com a personalidade e liderança de Vladimir Putin, que consideram “um verdadeiro chefe”, próximo de uma linha conservadora e nacionalista – o que explica as divergências no interior dos movimentos.
Autor de várias obras – entre as quais o recém-lançado As Europas e os Novíssimos Príncipes, Os escândalos populistas (Sílabo, 208 págs, €15,90) –, José Filipe Pinto alerta para “um sério risco” da participação da extrema-direita neste conflito, pois não tem dúvidas que esta experiência está a ser usada como”rampa de lançamento” para “ser criado um movimento de extrema-direita transnacional, não circunscrito às fronteiras de determinado País, mas com base em ideais”, que vão ao encontro daquilo que são os seus principios identitários: uma Europa branca, cristã e tradicionalista (independentemente de nacionalidades).
“Não tenho dúvidas que o objetivo daextrema-direita europeia, a médio prazo, será coligar todos estes grupos e pessoas em nome de uma Europa que comunga dos seus princípios”, garante. Para isso, contam com o treino e a experiência na guerra (e armas na mão).
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O risco das armas de guerra “perdidas” no rescaldo do conflito
Quando, na década de 1980, o Afeganistão era palco de uma guerra entre soviéticos, que suportavam o governo de Cabul, e mujahidines, apoiados pelos Estados Unidos, o País tornou-se no epicentro do jihadismo mundial, com militantes islâmicos radicais (como Osama Bin Laden) a se reunirem para lutarem contra os comunistas.
Os milhares de milhões de dólares norte-americanos permitiram treinar e armar os guerrilheiros islâmicos – incluindo com mísseis Stinger (que se tornariam um flagelo para a força aérea soviética), decisivos para o desfecho do conflito –, mas Washington ignorava, na altura, que a vitória talibã no Afeganistão iria galvanizar os radicais e lançar as bases para o que seriam os futuros ataques terroristas no Ocidente, como o 11 de setembro de 2001.
A história legitima a pergunta: a extrema-direita que, hoje, combate na guerra da Ucrânia – de ambos os lados –, representa os mesmos riscos para o futuro das democracias ocidentais?
Quando tudo isto terminar, as autoridades têm obrigatoriamente de estar mais atentas às atividades destas pessoas e destes grupos
Jorge Bacelar Gouveia
Contactado pela VISÃO, Jorge Bacelar Gouveia, presidente Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT), admite “alguma preocupação” com estas movimentações, e alerta para “a circulação de armas”, quando o conflito terminar. “As armas, para mais de guerra, não podem voltar para os Países de origem destes combatentes e circular livremente”, sublinha.
O presidente do OSCOT refere que, para já, “nada impede que estas pessoas possam sair dos Países e seguir para a Ucrânia”, mas avisa que “as consequências podem, de facto, ser perigosas”. “No futuro, quando tudo isto terminar, as autoridades, incluindo as portuguesas, têm obrigatoriamente de estar mais atentas às atividades destas pessoas e destes grupos”, conclui.