Os bilhetes de avião para o Dubai já estavam comprados e os hotéis para duas semanas de férias marcados. Mas, há dias, Rolando Barros, analista financeiro, de 37 anos, teve de deitá-los para o lixo, cancelar as reservas hoteleiras e consolar a mulher Joana e a filha Valentina. Tudo isto porque a sua casa fica em Artilleros, em Vicalvaro, um dos bairros confinados da comunidade de Madrid.
“Se vivesse a 20 metros já poderia ir de férias, tal como planeado. Mas como estou numa área abrangida por outras medidas, a polícia disse-me que não poderia viajar, só se fosse por razões profissionais”, conta, desolado, à janela do apartamento de onde pouco tem saído desde março. Só não está mais desesperado, porque a companhia aérea lhe prometeu reembolso.
De resto, a vida corre com alguma aparente normalidade, desde que não passe a fronteira estabelecida por lei. Dentro da sua freguesia, pode circular à vontade, embora tudo feche às dez da noite, coisa difícil de imaginar numa cidade como Madrid, mesmo tratando-se da periferia. Rolando vai ao ginásio e passeia com a sua filha pequenina, que esteve de quarentena porque na creche que frequenta houve um caso positivo. Nada disto seria possível antes do verão, quando Espanha, e especialmente Madrid, esteve sujeita a num fortíssimo lockdown, bastante policiado. Agora, Rolando já não vê polícia em lado nenhum.
A Comunidade de Madrid tem, neste momento, 43% dos casos de infetados de Espanha, que registou no último dia de setembro 11.016 novas infeções e 177 mortos. E por isso, para já, há 37 bairros com restrições mais apertadas, à semelhança do que se passou com algumas freguesias de Lisboa, mais afetadas pelo número de casos positivos. Mas as medidas vão apertar ainda mais. A maioria das comunidades autónomas acabou de aprovar um plano para ampliar as restrições em cidades de maior dimensão.
A Comunidade de Madrid tem, neste momento, 43% dos casos de infetados de Espanha, que registou no último dia de setembro 11.016 novas infeções e 177 mortos. E por isso, para já, há 37 bairros com restrições mais apertadas
As desigualdades a que Rolando Barros assiste atualmente, põem-no irritado: “Os bares no nosso bairro têm de fechar às 22 horas e deixar entrar apenas 50% dos clientes, enquanto que um mesmo em frente, mas já fora da fronteira, fecha à meia-noite e pode meter mais pessoas lá dentro. Não faz sentido.”
Sente que a saúde pública está de novo num caos e vale-lhe o seguro pago pela empresa e recorrer aos serviços privados. Foi assim que fez o teste à sua filha, caso contrário não saberia se ela tinha contraído o coronavírus. Não contraiu.
Chega-se mais cedo aos hospitais
Fábio Dinis Figueiredo, há 13 anos enfermeiro de Cuidados Intensivos num hospital privado de Madrid, não podia estar mais de acordo com Rolando, embora nunca se tenha cruzado com ele.
Apesar de os 102 hospitais da região terem contratado muitos profissionais, especialmente no público, não tem dúvidas de que a realidade que o Governo divulga não é a verdadeira. “Todos os dias reportamos o número de casos e dos internamentos para uma base de dados comum, e os nossos números nunca correspondem aos oficiais”, denuncia. Mais, quando as autoridades referem as percentagens de ocupação de camas nas unidades de cuidados intensivos estão a referir-se à capacidade da época da primeira vaga, muito, mas muito acima da capacidade máxima dos hospitais. Ou seja, quando se fala em 60%, na realidade a situação é bem pior. “O número de camas disponível é sempre o que for necessário.”
“Os mais de 10 mil contágios diários só vão ter repercussão nos hospitais daqui a uns dias, porque as complicações surgem ao fim de 10 dias após a infeção. E todos são candidatos aos cuidados intensivos, porque, nesta doença, a situação do doente muda muito rapidamente”, explica. No entanto, está mais confiante, pois nota que a realidade mudou, apesar de o vírus ser o mesmo. “Hoje, as pessoas são internadas mais cedo, o que nos dá maior margem terapêutica, que resulta numa menor mortalidade. Antes, os doentes entravam no hospital em ‘trabalho de parto’, logo para ventilar e entubar, pois ficavam em casa até à última. Além disso, hoje as pessoas são mais novas e aguentam-se melhor.”
Fábio, como 25% dos seus colegas, foi infetado em abril e esteve em casa, com sintomas ligeiros, mas ainda assim de quarentena. Atribui as culpas a este índice de infeção de profissionais de saúde à falta de proteção adequada, em quantidade e em qualidade.
Já pouco resta da ‘movida‘
Felizmente, Maria de Lurdes Vale, 55 anos, diretora do Turismo de Portugal em Madrid, não se infetou, mas também mal saía de casa, porque era logo mandada parar pela polícia para justificar a sua presença nas ruas da cidade que se habituou a calcorrear. “Não vamos voltar a essa situação, isso é certo. Acho que com o devido distanciamento e máscara, conseguimos manter uma vida quase normal”, conta a partir dos escritórios do Turismo, no coração da cidade. Maria não vive numa zona confinada e já retomou as reuniões presenciais com os operadores e agentes turísticos, ainda que em menor dimensão e em salas grandes.
Claro que estranha a falta da ‘movida’ espanhola, que ainda se vai ressentir mais agora que as ‘barras’ estão proibidas e os restaurantes e bares obrigados a fechar até à meia-noite, tal como em Portugal. Estava habituada a ver os 13 milhões de turistas a circularem, a entrarem nas lojas, a deliciarem-se com tapas e copos de vinho, juntamente com os madrilenos, que vivem na rua. Hoje, há muito comércio a falir, apesar de o lay-off ter sido prolongado até janeiro, grandes hotéis de portas fechadas e vários restaurantes a queixarem-se da falta de rentabilidade. E quanto mais os números sobem, menos gente se arrisca.
Francisco Mozos, 23 anos, vive em Lavapiés, um bairro típico no centro da cidade, enquanto estuda interpretação e ensina português online. Está contente por as escolas estarem de novo abertas, mas vê alguns colegas a levarem o seu papel de autorização para se deslocarem dos bairros periféricos para as aulas.
Na rua, nas conversas de café ou com os amigos, Francisco sente a impaciência e o nervosismo a aumentarem. “Há uma sensação de impotência generalizada, pois, apesar de todas as medidas preventivas, como a diminuição do número de pessoas que se podem juntar para seis e o uso de máscara em todo o lado, a situação continua a piorar”, nota. “Não há confiança política, parece que está tudo à deriva. Existe muito choque entre o governo central e a autonomia, dirigidos por partidos diferentes.”
Há uma sensação de impotência generalizada, pois, apesar de todas as medidas preventivas, como a diminuição do número de pessoas que se podem juntar para seis e o uso de máscara em todo o lado, a situação continua a piorar
Francisco Mozos
Apesar de tudo, no centro a vida corre com aparente normalidade, mas a face da nova pobreza sobressai aos olhos de Francisco. “Ao lado de minha casa, havia um bazar chinês, agora reconvertido numa cantina social. A fila é imensa e composta por pessoas que aparentemente não recorreriam a este tipo de ajuda”, observa.
Madrid parece outra cidade, com as ruas desertas à noite. Mas isso, Amílcar Jesus Dias, 46 anos, consultor financeiro, não pode atestar. Desde que isto tudo começou, em março, foi apenas uma vez à zona central para ir buscar uma coisa ao escritório. Desde então, está com a sua família a 30 quilómetros da confusão, num meio pequeno em que a realidade descrita pelos seus conterrâneos lhe aparece distante. É como no grupo de Facebook da comunidade portuguesa na capital espanhola. Lá, os posts revelam mais depressa uma preocupação em arranjar trabalho ou em partilhar imagens de pastéis de nata deliciosos, com sabor a Portugal.