Passaram três anos desde que o navio Iuventa foi apreendido em Itália, por suspeitas de auxílio à imigração ilegal, no mar Mediterrâneo. Entre os 10 tripulantes, ao serviço da organização não governamental alemã Jugend Rettet, encontrava-se o português Miguel Duarte, constituído arguido em 2018, suspeito do mesmo crime, cuja moldura penal atinge os 20 anos de cadeia. Esta quarta-feira, no âmbito de uma campanha global, a Amnistia Internacional lançou uma petição a pedir ao Ministério Público italiano para abandonar a investigação, que se arrasta sem decisão de arquivamento ou pronunciamento para julgamento. Em entrevista à VISÃO, Miguel Duarte, hoje com 27 anos, diz acreditar que o verdadeiro objetivo das autoridades italianas é interromper as ações de resgate no Mediterrâneo e não prendê-lo (nem aos outros tripulantes), num processo que garante ter sido desencadeado por Matteo Salvini, líder da extrema-direita italiana. Há três anos afastado, a conselho dos advogados, daquela que diz ser a prioridade da sua vida, este voluntário da Azambuja entende agora que é tempo de regressar ao local onde a ONG que representava alega ter salvado 14 mil vidas, entre 2016 e 2017, em operações de resgate aos migrantes africanos que procuram uma nova vida na Europa.
Em que medida é relevante este apelo da Amnistia Internacional ao Ministério Público italiano para abandonar a investigação?
Ter uma organização tão reconhecida em matéria de direitos humanos a defender-nos abertamente é importantíssimo, porque valida a nossa causa aos olhos de muita gente. É mais uma voz a juntar-se a esta causa da solidariedade e dos direitos humanos, que estão manifestamente a ser atacados. É espetacular terem decidido participar.
Como tem vivido nestes últimos três anos desde que o Iuventa foi apreendido e, sobretudo, os últimos dois, já na condição de arguido, por suspeita de auxílio à imigração ilegal?
No início, houve alguma apreensão, medo até, porque nenhum de nós estava habituado a este tipo de coisas. O que nós fazíamos era resgate marítimo. Não somos advogados e não sabíamos exatamente o que isto significava. Quando começámos a receber cartas em casa do Ministério Público italiano, a ameaçar-nos com 20 anos de prisão, ficámos nervosos durante algum tempo. Mas rapidamente percebemos que se trata de um ato político e não propriamente jurídico. Não é uma tentativa de fazer cumprir a lei, é simplesmente uma instrumentalização do sistema judicial para atingir um fim político, que foi muitíssimo bem aproveitado pela extrema-direita italiana.
Como chegaram à conclusão de que se trata de um ato político?
Basta ver os detalhes do caso e a evolução da política italiana nos últimos anos. O que vimos em 2016 e 2017 foi um crescimento enorme da extrema-direita, com base numa narrativa anti-imigração. A demonização das ONG’s, vistas pela extrema-direita como o símbolo da chegada dos migrantes a Itália, foi-lhes extremamente vantajosa. O Matteo Salvini, antigo ministro do Interior, do partido de extrema-direita Liga, está pessoalmente envolvido no início do nosso caso. As primeiras suspeitas que chegaram ao procurador vieram de pessoas encarregadas por Matteo Salvini de recolher informações sobre nós. Sabemos hoje que a extrema-direita parlamentar italiana está profundamente envolvida nesta situação.
Isso faz com que tema mais uma condenação?
O objetivo das autoridades italianas não é prender-nos. É parar com o resgate marítimo e, entretanto, difamar o papel das ONG’s. Por outro lado, não confio nos escrúpulos destas pessoas. Se estivesse ao seu alcance e se fosse preciso para atingirem os seus fins políticos, acredito que nos prenderiam, certamente.
Atormenta-o a hipótese de vir ser condenado a 20 anos de prisão?
Não me atormenta porque tenho uma confiança enorme na pressão popular e, se há coisa que os últimos anos e têm ensinado, é que a esmagadora maioria das pessoas está do nosso lado e reconhece o importante papel da solidariedade. Na verdade, sinto-me apoiado, porque a maior parte das pessoas que conhecem este caso reconhecem que não estamos só a defender a nossa liberdade pessoal mas um princípio muito maior do que isso, que é a solidariedade e os direitos humanos.
Como está o processo? Que informações tem recebido dos advogados?
A partir de 2018, decorreu uma perícia aos materiais eletrónicos encontrados a bordo do navio. Por razões que desconheço, isto demora anos, mas penso que já terminou, recentemente. E agora estamos à espera. Parece já não haver uma desculpa para continuar a arrastar a investigação e a gastar dinheiro dos contribuintes italianos, portanto, mais tarde ou mais cedo, o procurador terá de tomar uma decisão: ou o caso é arquivado ou seguimos para tribunal.
Arrepende-se de alguma coisa?
De maneira nenhuma. Na verdade, o facto de estarmos injustamente sob investigação e de termos de lidar com isto tudo reforçou a nossa crença de que o nosso trabalho é necessário. As nossas vidas mudaram completamente, mas não os nossos princípios. Continuamos a achar que as pessoas precisam de ser salvas. E o problema é muito mais grave do que pensávamos, porque não são só as pessoas que migram que estão sob ataque. São também as pessoas que ajudam essas pessoas, ou seja, são os próprios princípios da solidariedade e da compaixão que estão sob ataque.
Na reconstrução computadorizada dos três resgates que estão na base da investigação italiana, realizada pelo Instituto Goldsmith, da Universidade de Londres, não só é contrariada a versão do Ministério Público italiano, como é perceptível o seu papel na linha da frente das operações. Como comenta as alegações das autoridades italianas que os acusam de terem atuado em conluio com traficantes libaneses, por supostamente terem comunicado com eles e lhes terem devolvido os barcos de onde retiraram os migrantes?
Olhamos para as acusações de que temos conhecimento e todas já foram provadas como sendo falsas por uma investigação independente, como se pode ver nessa reconstrução dos acontecimentos. Basicamente, é mais uma informação para corroborar a minha ideia de que isto é um ato político. A investigação pega em situações que se passaram e interpreta-as sob uma luz que induz completamente em erro. Tem contradições, imagens mal legendadas, conclusões completamente absurdas. Acho que este caso seria extremamente difícil de pôr de pé em tribunal, porque com uma investigação tão fraca não há maneira de isto chegar a bom porto para eles.
Desde que o Iuventa foi apreendido, em agosto de 2017, nunca mais voltou ao Mediterrâneo?
Os nossos advogados desaconselharam a nossa presença no resgate marítimo, porque supostamente haveria o risco de prisão preventiva, por estarmos sob investigação e podermos ser considerados reincidentes. Como já passaram três anos desde que o navio foi arrestado, estamos a considerar fortemente voltar ao mar Mediterrâneo para fazermos o trabalho que fazíamos, que é salvar vidas. O tempo é precioso e não se justifica que uma tripulação inteira fique parada por algo tão absurdo.
Mas os advogados continuam a desaconselhar, ou não?
Existe sempre o risco, mas a verdade está do nosso lado e o moral também. Quem não deve não teme, e o que temos a fazer é mostrar que a sociedade civil não se pode deixar intimidar por estes joguinhos políticos que fazem com o sistema judicial.
Aceitam a tese de que o arresto do Iuventa foi um ato de retaliação por não terem assinado o Código de Conduta para as ações de resgate no Mediterrâneo?
Isso foi um disparate dos média italianos. São dois coisas completamente separadas. O Código de Conduta foi uma proposta do governo italiano para, de alguma forma, condicionar e uniformizar o resgate marítimo no mar Mediterrâneo. Foi feito unilateralmente e depois pediram às ONG’s que os assinassem. Não era vinculativo, portanto, não o assinar não significava ficar ilegal. O que aconteceu foi que algumas ONG’s assinaram e outras identificaram problemas éticos e não o assinaram. Não foi só a nossa ONG que não assinou. A dos Médicos Sem Fronteiras, por exemplo, também não assinou. Foi uma negociação que correu mal.
O que mudou na sua vida depois da apreensão do Iuventa?
Basicamente, fiquei um bocado sem chão. A minha vida era aquilo, era o que eu queria fazer a curto e a longo prazo. Era ali que me sentia mais útil e tinha um impacto mais positivo. Quando me tiraram o tapete, tive de arranjar outras coisas para fazer, como um doutoramento, por exemplo. Mas se tivesse tido essa possibilidade, teria ficado lá, certamente, porque essa é a minha primeira opção.
Tem mantido contactos com o governo português?
Ultimamente, não. Tivemos em 2018, com uma campanha muito grande, em que também houve contactos com a Presidência da República e alguns ministérios, e desde então não houve grandes desenvolvimentos.
E com os outros nove tripulantes? Como é que eles estão a lidar com esta espera?
Um pouco como eu. Esta situação, por ultrajante que possa ser, acabou por nos aproximar bastante uns dos outros. Há quem se tenha juntado a outras organizações para ajudarem como podem, outras pessoas foram estudar ou trabalhar noutras áreas, mas continuamos todos a lutar contra isto de forma completamente coordenada. Continuamos juntos.