Quão preocupante é a situação do cancro digestivo?
Estamos a falar de cinco diferentes: esófago, estômago, fígado, pâncreas e cólon e reto. Os Big Five, como costumamos falar, dá um terço dos cancros e dez por cento das mortes em Portugal. O do fígado e o do pâncreas são dois dos piores em termos de prognóstico. O fígado vai aumentar nos próximos trinta anos, o do pâncreas já tem vindo a aumentar e o do cólon também irá crescer.
Uma consequência, inevitável, do envelhecimento da população…
Sim, mas também tem a ver com a obesidade, tabaco, álcool.
Neste momento, o rastreio ao cancro do cólon está instituído. Mesmo assim, há quem duvide do seu efeito na redução da mortalidade por esta doença.
Há vários estudos a mostrar e eficácia para a redução da mortalidade. Há dois tipos de rastreio: a pesquisa de sangue oculto nas fezes e a colonoscopia. Por questões económicas, poupança de recursos, recomenda-se o sangue oculto. Mas o melhor exame é a colonoscopia, que vê logo as lesões, permite retirá-las. Se o exame estiver normal, só precisa de o repetir dali a dez anos. Portugal tem uma das melhores medicinas do mundo. Numa estatística recente, da Bloomberg, estávamos em 22º lugar, conjugando o público com o privado. Mas admito que, do ponto de vista prático, seja difícil fazer colonoscopias a toda a gente, e ainda por cima agora as pessoas optam todas por fazer com sedação. Não é o exame ideal e era bom que aparecesse um melhor, mais fácil, tipo uma cápsula.
Já há um sistema que se baseia numa cápsula [com uma câmara, que a pessoa engole]…
Sim, mas não é muito eficaz para rastreio, até porque não tira as lesões, como acontece na colonoscopia. É mais para o intestino delgado.
No cancro do pulmão, sabe-se que 90% dos casos podia ser evitado. No do cólon, qual a percentagem que se pode evitar?
Nas populações sujeitas a rastreio, evitam-se à volta de 60% dos casos.
De onde espera que venham os principais avanços?
Tenho visto em vários campos. Estamos numa fase de grandes avanços, relacionados com a tecnologia, os Big Data. Na minha área temos assistido a uma melhoria fantástica das endoscopias. E é possível que dentro de vinte anos apareça alguma coisa nova que venha resolver o problema do rastreio. E depois há o avanço enorme dos medicamentos, que tem permitido aumentos fantásticos na sobrevivência. Espero a melhoria em vários sentidos. E gostava que Portugal se organizasse, que fizesse disso um desígnio nacional: o combate ao cancro do cólon. Fizemo-lo muito bem quanto à mortalidade infantil. E não foi fácil montar uma estrutura tão boa nesta área! Fizemo-lo com o VIH, a hepatite C. Portugal tem experiência a montar esquemas de saúde para a população.
Por onde deveríamos começar?
Os gastrenterologistas defendem que Portugal se organize, garantindo que toda a gente faz o rastreio, seja por sangue oculto, seja por colonoscopia, com bons aparelhos, boa preparação. Os números dizem tudo: todos os anos, são dez mil novos casos (o segundo, que é a mama, são 9 600). É o cancro mais frequente, em termos de incidência. É um problema de saúde pública que merecia mais atenção. É verdade que se melhorou muito, mas ainda há campo para melhorias.
Qual a importância da deteção precoce no cancro do cólon?
Se um cancro do cólon for apanhado numa fase inicial, a probabilidade de cura é de 90 por cento. Com invasão, morrem 85% nos cinco anos que se seguem.
Temos assistido nos, últimos anos, ao aumento do número de processos em tribunal relacionados com exames endoscópicos. Como encara esta questão?
Na colonoscopia, em mil casos, há um em que há uma perfuração. É assim a nível internacional. Trata-se de uma situação relevante que nos preocupa e que deve ser debatida, de forma clara e transparente, pelos diversos grupos profissionais envolvidos, como sejam o Ministério Público, o Legislador, as Autoridades de Saúde e a Ordem dos Médicos. O doente é o centro da nossa missão, não poderá ser esquecido neste processo e, para tal, devemos ouvi-lo também. Assim sendo, a Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia considera imperativo desenvolver todos os esforços para assegurar a máxima qualidade da execução dos exames endoscópicos, designadamente a colonoscopia, no sentido da redução de riscos (ainda que muito raros), ou seja, da ocorrência de efeitos não desejados (perfuração). Neste sentido, consideramos importante abrir o debate aos principais intervenientes envolvidos, e para tal temos vindo a promover encontros com Direção-Geral da Saúde, alguns partidos da AR (Bloco de Esquerda e PSD), Procuradoria Distrital de Lisboa, Advogados, Tribunal da Relação de Lisboa, entre outros que se encontram já agendados.
Foi eleito este ano presidente de uma sociedade médica que já conta com quase 60 anos. Que marca gostaria de deixar?
O gastrenterologista lida com doenças frequentes e não graves e com outras pouco frequentes, mas graves, como é o caso do cancro. Normalmente as pessoas não nos associam aos cancros – somos apenas aqueles que colocam os tubos -, mas na verdade a relação com a oncologia é muito grande, porque um terço de todos os cancros passa por nós. Nomeadamente o cancro mais importante, o do cólon e reto. É o de maior incidência – há dez mil novos casos por ano. Destes, 40% vão acabar em morte, nos cinco anos após o diagnóstico. Nas não graves temos dois milhões com obstipação, três milhões com refluxo. Gostava que as pessoas ficassem com esta noção, da relevância do trabalho deste especialistas para a sua saúde.
Já temos aí metade da população portuguesa.
Algumas pessoas acumulam os dois problemas. E depois há sete milhões de pessoas que vivem com a Helicobacter pylori [bactéria associada ao cancro do estômago]. Um terço das pessoas passa pelo menos uma vez na vida pelo gastrenterologista.