Isabel do Carmo lembra-se bem do enviado da Ordem dos Médicos que a visitou, a si e aos seus camaradas do PRP (Partido Revolucionário do Proletariado), quando iniciaram uma greve de fome que só terminaria trinta dias depois, com a desejada publicação da Lei da Amnistia.
Novembro de 1979. A médica estava em Custóias, no Porto, um tal de Dr. Xavier quis ouvi-la e, pouco depois, a Ordem tomava posição contra a alimentação compulsiva dos grevistas de fome. “Também decidiria que não devia haver a presença de guardas durante as consultas, e era uma direção de Direita.”
Primeiro em Custóias, mais tarde no Hospital Prisional de Caxias e, na semana final, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, nunca a obrigaram a alimentar-se, embora os guardas levassem comida à sua cela todos os dias, a todas as refeições. “Punham-na ao pé de nós porque, segundo os regulamentos prisionais, não podiam colaborar com o preso.”
Ela não tocava em comida, mas bebia um litro e meio a dois litros de água por dia. E, em Santa Maria, nunca recusou que lhe administrassem soro. Não faria sentido, diz hoje. “Uma greve de fome é um instrumento para se atingir um determinado objetivo, quanto mais tempo durar, mais possibilidades há de as instituições cederem”, lembra. “O soro não vai salvar a vida, apenas a prolonga. Mas é uma possibilidade de esse instrumento ser mais eficaz.”
Averiguar diariamente se deseja continuar
Sendo médica, Isabel do Carmo estava ciente dos perigos que corria. No hospital, via os resultados das análises e fazia contas. “O potássio está baixo, tão baixo. Potássio baixo faz parar o coração. Espero que o meu coração não pare. Tenho medo”, escreveria, em maio de 2014, num texto que leu durante uma performance sobre o esforço, realizada pelo grupo Visões Úteis, no Festival Serralves em Festa, no Porto [Ver texto em baixo].
Em novembro de 1979, Isabel do Carmo tinha 38 anos, era casada (com Carlos Antunes, também do PRP e também ele a fazer greve de fome) e mãe de dois filhos. Os trinta dias sem comer deixariam sequelas, hoje a que lhe dá mais trabalho é uma arritmia cardíaca que trata com comprimidos. “Só relacionei mais tarde, quando estudei a anorexia nervosa. As greves de fome estão pouco investigadas, é difícil chegar a conclusões. Os casos de anorexia são diferentes porque não é uma fome absoluta, a pessoa vai comendo qualquer coisa: uma maçã, uma bolacha.”
Apesar das sequelas, Isabel do Carmo não defende a alimentação compulsiva de Luaty ou de outros grevistas de fome.
O dilema ético – devem ou não os médicos alimentar um grevista da fome – não é de hoje. No final de 1991, na Declaração de Malta, a Assembleia Médica Mundial decidiu que nunca é eticamente aceitável a alimentação realizada sob ameaça, coação, força ou meio de imobilização por se tratar de uma forma de tratamento desumano e degradante, mesmo que a intenção seja benéfica.
Aponta-se, no entanto, para a necessidade de o médico averiguar diariamente se o paciente deseja continuar com a greve de fome e qual a sua vontade relativamente ao tratamento no caso de vir a ficar impossibilitado de tomar uma decisão consciente. Mas sublinha-se que os profissionais de saúde nunca devem pressionar o doente para que suspenda a greve.
E no caso de a reivindicação ser satisfeita?
Em Portugal, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) pronunciou-se em 2013 sobre a alimentação compulsiva de reclusos em greve de fome, baseando a sua decisão nas orientações da Declaração de Malta. Num parecer publicado em maio desse ano, defende que a alimentação artificial para salvar a vida de um recluso, cuja última afirmação de autonomia seja a opção por uma greve de fome, com perfeita consciência de que esta poderá implicar a perda da sua vida, “poderá constituir uma grave violação da sua dignidade pessoal”.
Mas ressalva que há que usar de todo o cuidado na verificação de que a assunção desse risco último constitui realmente a manifestação de uma vontade esclarecida e livremente formada. “Na dúvida, nem a autoridade prisional nem o médico devem, no entender deste Conselho, ter qualquer poder de decisão: a alimentação artificial, com o mínimo de sofrimento para o recluso e o respeito pela sua dignidade, impõe-se.”
Mesmo depois da perda de consciência, o CNECV defende que a alimentação artificial do recluso está, em princípio, eticamente excluída desde que não haja dúvidas sobre a aceitação lúcida de todos os seus efeitos. Isto, a não ser que haja uma alteração dos pressupostos em que a manifestação da vontade teve lugar.
“Figure-se, por exemplo, a hipótese de entretanto ser satisfeita, ainda que parcialmente, uma reivindicação do recluso, mesmo que não em consequência da greve desencadeada. Neste caso, estando ele já impossibilitado de se pronunciar, a alimentação artificial é eticamente aconselhável, e não alimentar o recluso pode até constituir uma grave falta ética aos deveres de cuidado que impendem sobre a autoridade prisional.”
Testemunho de Isabel do Carmo, recordando a greve de fome de trinta dias que realizou em 1979:
‘O poder leva tempo a ceder’*
Não comer…
Esgotadas que estão outras formas de luta …
Que formas de luta? Na prisão há poucas formas de luta. Fugir é dar razão à acusação. Bater, bater nas grades, dá direito a castigo. Fazer queixas, reclamar, recorrer. Os papéis vão caindo em resmas na secretária. Dos advogados. Dos tribunais. Dos diretores. Dos provedores. São montes de papéis. Palavra escrita que voa entre a cela e o ar respirável que nos separa da liberdade.
Não comer…A greve da fome é a luta mais eficaz dentro das cadeias. As autoridades temem ver cair morto pela fome um preso. Quem morre em greve da fome é porque tem razão. E a razão de quem morre é sempre mais forte do que a razão de quem manda.
Não comer … Levar a greve até ao fim. Uma greve sem fim. É essa falta de limite que mais dói. Um esforço sem fim à vista.
Iniciar a greve da fome. Começa amanhã. Não sei quando vai acabar. Ou se vai acabar. É uma viagem de que não conhecemos o fim. Começa amanhã. Os primeiros dias são os piores. As refeições na cadeia são um momento de corte. É como se fosse a vida a correr lá fora, pequeno-almoço, almoço, jantar. É a fingir a vida quotidiana em liberdade. Durante a greve da fome não há cortes, não há intervalos. Não comer… No primeiro dia não nos sentamos à mesa. Nem de manhã, nem ao meio dia, nem à noite. É o tempo que passa contínuo. Sem intervalos. Um dia atrás do outro. Não comer… Primeiro dia. Segundo dia. Terceiro dia. Trinta dias. Durante trinta dias, trinta camaradas fizeram greve da fome pela publicação da lei de amnistia. Terminou ao fim de 30 dias. Mas não sabíamos, nem ao primeiro, nem ao segundo, nem todos os dias.
Convém estar parado. Deitar-se na cama. Gastar o mínimo de energia. É assim que deve ser. No entanto uma hiperatividade mexe por dentro. E anda que anda. E fala. E decide. E mexe. Tal e qual como vejo fazer às jovens anoréticas enquanto duram que duram as baixíssimas rações. Tal e qual como aconteceu com a grande anorética mística – Santa Catarina de Siena. Anda que anda de Siena para Roma. Convence o Papa. Recusa Avignon. Afirma Roma. Anos a sobreviver e a mexer. Até que cai sobre as lajes de uma igreja de Siena. E o confessor escreve – Catarina recusa alimentar-se.
Os dias passam. Tentam convencer-nos a comer. Não comemos. Os dias passam. Fazem-nos análises. O açúcar do sangue baixa. Mas o fígado vai fabricando açúcar. O organismo vai queimando os músculos para sobreviver. Come os músculos. Sinto os músculos a atrofiarem. A produzir açúcar desta maneira diferente, o organismo fabrica acetona. Cheiramos a acetona. Será que o músculo do meu coração também está a ser digerido a pouco e pouco? Nunca mais deixei de ter palpitações, taquicardia. O músculo do meu coração é que comanda.
Perdemos muitos quilos. Estamos magras, a cara está escavada. Algumas estão deitadas. Pálidas. Olheiras. E no entanto fazemos um esforço para beber água, muita água. É preciso não ficar desidratado. Resistir. O segredo da greve da fome é resistir o mais possível. Até o poder ceder. O poder leva tempo a ceder. Quando cede.
O meu pai escreve-me uma carta a falar de Bobby Sands. Bobby Sands é o preso do Exército Republicano Irlandês que lutava pela independência da Irlanda. Estava preso. Lutava para ser considerado preso político. Fez greve de fome. Fome… Fome… Fome… Até ao fim. A dama de ferro, Sra. Thatcher, não cedeu. Ao fim de 52 dias morreu. O meu pai escreveu-me, ela tem coração de ferro, eles têm coração duro.
Vamos para o hospital. Dão-nos soro. Não comemos. Vemos as análises. O potássio está baixo, tão baixo. Potássio baixo faz parar o coração. Espero que o meu coração não pare. Tenho medo.
Ao fim de 30 dias, a lei de amnistia vai ser publicada. Mas não nos será aplicada. Outras greves. Mais greves. Ao fim de 4 anos saímos. A minha filha percebeu o que foi a greve da fome. O meu filho não percebeu nada. Mas sentiu.
(*) Título da responsabilidade da redação