No voo TP7001 de ontem, sábado, que fazia a ligação entre Roma e a capital do Egito, um italiano que se dirige ao Gana, para férias, lê, despreocupado, a edição de sábado do jornal La Repubblica: “Massacre no Cairo, é a guerra civil”, é a manchete que destaca as dezenas de mortes ocorridas na “Sexta-feira da Raiva”, convocada pela Irmandade Muçulmana para protestar contra a deposição e prisão domiciliária em parte incerta do seu presidente, Mohammed Morsi, e o surgimento de milícias paramilitares que disparam, até, sobre os socorristas.
O voo nem está muito vazio mas destaca-se pela quase total ausência de turistas. O turismo representa 11% do PIB da nação, de 200 e poucos mil milhões de dólares. O Egito é o mais populoso estado árabe (80 milhões de habitantes) e um colosso estratégico do norte de África e do Médio Oriente, mas, se se comparar a riqueza per capita, fica atrás de toda a gente, com a pouco lisonjeira exceção do Iémen. É por isso, um país desesperadamente precisado de dinheiro – como já vos vamos mostrar.
As duas principais agências de viagens do planeta acabam de cancelar todos os seus pacotes, pelo menos até dia 15 de setembro e as mais pequenas seguiram-lhe os passos. Os americanos, primeiro, e depois os franceses e os alemães, aconselham os seus compatriotas que habitam ou trabalham na terra dos faraós para saírem o mais rapidamente possível.
No voo, interrogo-me sobre se, antes da libertação religiosa que constitui a curta era de domínio da Irmandade Muçulmana, teria sido possível ver as hospedeiras usarem a hijab sem preocupações, como acontece atualmente. Egípcios emigrados fazem perguntas à tripulação, que responde a medo, com sorrisos mal-enjeitados, e ouvem as respostas com exclamações de espanto e incredulidade. Por sorte ou azar calhou-me um lugar à janela junto a uma das quatro portas de emergência. A frequência inusitada com que um dos membros da tripulação vem dizer-me que não se pode mexer na alavanca que diz “Pull” lembra-me uma viagem de regresso da África do Sul com o repórter fotográfico Inácio Ludgero (Conto em poucas palavras: o Inácio, um bom vivant e um fotógrafo aclamado, mal pode esperar por se recostar na cadeira do Jumbo em que seguíamos, para, como de costume, adormecer. Quando o fez, a senhora que estava atrás, uma negra forte de cerca de 60 anos, reagiu intempestivamente, ameaçando agredi-lo com a mala: ela tinha pago não sei quantos rands por aquele espaço e ele, Inácio, estava despudoradamente a invadi-lo…). De igual modo, pensei: este tipo acha que eu acho que se pode abrir a janela para apanhar ar?
Por esta altura, ainda não me tinha decidido que estratégia seguir. Quem sou eu? Um turista? Um jornalista? Ser jornalista pode ter as suas vantagens, mas tem inconvenientes. É frequente nos países do norte de África, os ministérios da Informação dispensarem um ou mais agentes só para nos seguirem os passos. Ficam assim a saber com quem falamos e a que horas falamos – para, se a mensagem não for a correta, poderem dispensar castigos mal saiamos do pais. Aconteceu-me já várias vezes, a última das quais quando fiz equipa com um franco-marroquino a trabalhar como repórter do El Mundo em Espanha, que me fez notar que de 100 em 100 quilómetros, o estranho carro negro que seguia atrás de nós era substituído por outro estranho carro negro, exatamente da mesma marca, mas com duas caras diferentes – mas iguais – lá dentro.
Por outro lado, creio só me ter livrado de uma inspeção mais demorada pela polícia alfandegária em Roma quando invoquei a minha condição profissional. Um tipo com ar de marroquino e passaporte europeu a dirigir-se para um pais em guerra civil pode levantar suspeitas. “O que vais fazer ao Cairo? Turismo?”, disse o agente, tratando-me por tu e com ar gozão. “Trabalho”, respondi. “Trabalho”, riu-se, incrédulo. “Mas que raio fazes tu?”.”Sou Jornalista”. Siga.
Depois, lembrei-me que, no dia anterior, o editor de internacional do diário catalão La Vanguardia chegara ao Cairo pouco antes do anoitecer – e resolvera furar o recolher obrigatório, seguindo de carro para a metrópole. Foi descaradamente roubado num check point e nem os cigarros lhe foram poupados. Assim, quando chega o papelinho para preencher o nosso nome e o que vamos fazer ao Cairo já me tinha decido: turista. Mas haverá alguém que acredite nisso?
Depois de quase nove horas sem um único cigarro, exceção feita a duas ou três passas numa casa de banho do aeroporto Leonardo da Vinci, estava a ficar relativamente enervado: O TP7001 só tocaria o solo eram quase seis horas e eu ainda nem sequer tinha visto de entrada. O recolher obrigatório começava às sete e quebrá-lo, como já vos contei, é pedir para ter problemas. Mas, compreenderão os que forem fumadores, depois de nove horas sem fumar, a visão de uma sala de fumo – mesmo uma mal ventilada e exígua como a do aeroporto do Cairo – assemelha-se à visão do paraíso na terra. Fumei e inalei, pois.
O visto foi fácil de obter: pagam-se 15 dólares e pronto. A passagem pelo primeiro controlo de passaportes também decorreu sem problemas e ao segundo já um tipo de uma agência de viagens do aeroporto se tinha colado a mim. Pedia-me quatro vezes o preço da viagem entre o aeroporto e o Cairo e perguntava-me se não queria ver as pirâmides. Alinhei: afinal, se sou turista, bem posso ter este tipo atrás. O que é certo é que bastou um sinal dele, para este vosso “turista” passar à frente de toda a gente da fila do segundo controlo de passaportes. Uma olhadela rápida para a fotografia e já está: Cairo.
A viagem até ao Fairmont Nile Hotel foi feita, por vezes, a 140 quilómetros por hora e o trajeto escolhido de forma a evitar checkpoints – Passámos pela Avenida 16 de Maio, onde morreu uma das primeira vítimas deste conflito. Passamos também pela mesquita Al Fatah, onde sábado, o exército desalojou fiéis da Irmandade Muçulmana que tinham ali procurado santuário e de onde terão sido disparados tiros contra as autoridades. Com dificuldade, adormecemos.
O Cairo – 18 milhões de habitantes, sujeitos a um regime de estado de emergência e recolher obrigatório -amanheceu numa calma tensa, quase esquizófrenica. É uma metrópole que continua a funcionar (domingo, aqui, é um dia de trabalho normal), em que as pessoas se dirigem para os empregos no meio de colunas de tanques e forte presença militar…