O DIA NUNCA AMANHECEU…
Naquela casa o dia nunca amanheceu. O relógio de cuco da sala recusou-se a marcar as horas e a deixar que o passarinho saísse a porta pequenina para dizer que o tempo estava a passar. Também, os bailarinos feitos em madeira e vindos da longínqua Alemanha não encontraram forças para a sua costumada dança musicada que a alegrava como uma companhia de antepassados que atravessa gerações e continua presente nas casas em que os cheiros e os gostos permanecem sem jamais se adulterarem.
A mulher que nela habitava nunca compreendeu a teimosia do dia e do relógio. Mas não fez nenhum movimento para os salvar da inactividade inesperada. – Talvez amanhã recomecem os seus movimentos: a noite a fazer-se dia; o cuco a restabelecer-se de alguma dor desconhecida. Porque os objectos sabem segredos dos lugares onde sempre habitaram. E choram perdas e mágoas ainda antes que os seus proprietários delas tomem conhecimento.
Todo o trabalho daquele dia foi realizado com as luzes acesas e cautelas redobradas. Podia ser o último dia do mundo. Sabia que fora dito “…quem estiver no telhado deixe-se ficar; a mulher que se encontrar prestes a dar à luz aquiete-se…”. Por isso as regras tinham que ser cumpridas. A mulher assim fez. E aguardou.
Sentada em silêncio, as mãos colocadas sobre o vestido de seda e o olhar ausente, não se apercebeu de imediato que uma brisa leve e suave a penetrava e lhe segredava palavras de conforto sobre factos até aí desconhecidos. Então começou a perceber as razões do dia e do relógio de cuco que sempre estivera na sala da casa onde os seus filhos tinham nascido e crescido e onde agora só ela permanecia como guardiã de tradições para contar a netos e visitas curiosas das vidas alheias.
Abraçou a brisa e encostou a cabeça ao segredo que já tinha adivinhado. Fez as perguntas que tinham de ser feitas; recebeu as respostas que já sabia. Recolheu-se a um mundo onde não tinha tido lugar e foi à procura de recordações para encontrar o conforto que lhe era vedado por razões que nunca terão respostas em razões.
Nazaré, terra de pescadores. Na praia, zona de repouso e águas saudáveis em Verões quentes e plenos de maturidade, mulheres de sete saias coloridas posam ao lado de turistas famintos de imagens que nunca mais serão vistas pois que não registam senão segundos de interesses momentâneos.
Nazaré. Mulheres de preto vestidas arrepiam cabelos e gritam a perda de homens embarcados e não regressados. O mar revoltou-se. Não protegeu o barco pequeno que naquela noite se aventurou pelas suas águas revoltas a contrariar os avisos dos peritos nas artes da meteorologia. Sozinha na praia, com as suas sete saias e o cabelo solto, a mulher escondia-se no casulo feito de corpo e de alma. Ninguém a conhecia. Por isso, nem as crianças de cabelos loiros e nariz a pingar ouviram o lamento baixinho de um sofrimento que não se podia revelar. Os pés descalços aproximaram-se daquele mar cuja espuma veio confortar e abrandar como que a desculpar-se do que lhe havia roubado. A mulher conhecia os segredos do mar e todos os recantos do pequeno barco que tinha sido traído na ousadia de confrontar uma força superior à sua. Numa esperança que o coração teimava em manter viva, a mulher de pés descalços cobertos da espuma que quase se desculpava com avanços e recuos de beijos de água feitos, levantou os olhos para o longe esperando avistar uma pequena parte do ninho que ao longo de décadas vivera amores proibidos e escondidos de gente incapacitada para a compreensão dos grandes momentos que o mundo reserva a um número limitado de eleitos.
Muito horas passaram. As mulheres da praia desistiram dos seus gritos vindos de um passado que já não tinha lugar. Regressaram, chorosas, aos hábitos dos dias sem histórias para contar. Aguardariam notícias vindas de bombeiros e Inems. E de subsídios que a Junta de freguesia afirmara lhes seriam entregues.
A praia da Nazaré, despida das suas barracas coloridas e dos turistas a tirar fotografias às mulheres de sete saias, foi ficando vazia. O mar revolto do Inverno a transformar-se num marulhar suave e a entregar um rosto radioso à luz da manhã que se começava a anunciar. Como se quisesse desculpar-se…
Só a mulher enroscada, formando um casulo feito de corpo e alma, resistiu e esperou…
Dra. Maria da Conceição Brasil
30/10/2011