O AUTOR E ACTOR NÃO VOLTOU…
“Era sobretudo de noite que a violência estalava na cidade”. Assim começa a estória d’”O Homem que Dava Comida aos Pombos”.
O autor deste magnífico conto foi o Escritor Açoriano – Dr. Fernando Aires – falecido há dias em Ponta Delgada.
Não falo sobre o homem e o escritor. Sobre ele já muito se disse, comentou e escreveu. O pano do palco em que foi autor e actor já desceu sobre ele. Os aplausos prolongaram-se por mais do que o tempo habitual, mas ele não voltou para agradecer. Tinha partido em silêncio para uma Terra tão distante que o público não o podia acompanhar; faltavam-lhes as asas e ainda tinham os bolsos muito pesados…
Continuando a acompanhar o que se passava de noite naquela cidade e atendendo a que a violência tinha aí “assentado arraiais” sem que houvesse esperança de algum sossego, os habitantes “…reforçavam portas e janelas, e compravam cães de guarda… – o receio crescendo até ao ponto de sentirem susto com o barulho dos ratos no telhado”.
Porque nem de dia as pessoas se tranquilizavam, apesar da luz do sol, passava-lhes despercebido “…o nascer da serra todos os dias, e o translúcido do mar que vinha até onde a cidade findava.”
Mas havia alguém que ainda acreditava “…no existir dos espaços iluminados cheios da alegria inexplicável dos melros – os Pombos da Praça e as crianças pequenas”.
Um dia, naquele lugar de gente medrosa e carrancuda, algo de diferente aconteceu a despertar curiosidades e a ser centro de conversas e olhares mais ou menos indiscretos, embora aceites. Uma personagem diferente e sem história conhecida entrou na cidade. Os olhos deixavam transparecer uma tranquilidade a que já poucos estavam habituados. Homem de vestes simples e limpas, sandálias, cabelo comprido…Gostava de estar na Praça. E era vê-lo “…a dar de comer aos pombos – as aves pousadas nas mãos, no peito. Debicando-lhe os cabelos. Pondo-lhe uma penugem de luz à volta da cabeça”.
O interesse pelo homem que “…chegou sozinho e manso por entre os ruídos da cidade e dos homens irados…”, fruto possível das primeiras curiosidades, deu lugar a alarmes e inquietações, como é próprio de mentes pervertidas por vidas de estilo “largo, corrupto e vadio”. Foi assim que “…boatos sórdidos foram lançados ao vento – um nevoeiro venenoso a desfigurar o onde ainda o deserto não chegara”. Mas, o tempo passou e nenhum de tais boatos foi provado.
Então, e porque tudo o que se transforma em hábito deixa de interessar, o Homem que dava comida aos Pombos continuou na Praça da cidade a sorrir para as crianças enquanto os pombos se lhe aconchegavam numa “paisagem” digna de um conto amoroso e fraterno.
Até que um dia, logo pela manhã, ao ser aberto o jornal em casas, cafés e demais locais interessados em notícias, todos viram escrito em letras garrafais uma poderosa revelação: “… MAIS UMA CASA ARROMBADA NO CENTRO DA CIDADE. O POPULAR HOMEM DOS POMBOS, APANHADO EM FLAGRANTE, A CONTAS COM A POLÍCIA!
Eis a hora do povo…mas, também da polícia que ainda não encontrara nódoa passível de culpar aquele ser sereno e humilde. “…a cidade…aguardava. Uma vaidade por não se ter deixado enganar. O prazer de contar a história aumentada…”.
A polícia saboreou os métodos de tortura usados para obrigar a falar o Homem que dava comida aos Pombos daquela Praça. Mas só recebeu uma resposta: “- Foi por causa dos pássaros! Só fui ali para abrir as gaiolas! Só por causa disso – para libertar os pássaros!
Ao debruçar-me sobre este trabalho do Escritor Fernando Aires também foi só por causa disto: O homem revela o conto e o conto revela o homem!
Dra. Maria da Conceição Brasil mcbrasil2005@hotmail.com
15/11/2010