A discussão sobre o financiamento a 100% regressou ao debate público depois de o presidente de um dos maiores bancos nacionais defender que esta possibilidade deveria ser alargada a todos os consumidores. O tema não é novo, mas ganhou força com a medida atualmente em vigor para jovens até 35 anos, que permite financiar até 100% da primeira habitação para quem cumpra determinados critérios. Esta medida tem ajudado muitos jovens no acesso à casa própria, mas também tem contribuído para pressionar preços num mercado onde a oferta continua muito aquém da procura.

Para compreender esta discussão, importa recordar o enquadramento criado em 2018 pelo Banco de Portugal, quando foram implementadas medidas macroprudenciais que alteraram profundamente a concessão de crédito. A Recomendação Macroprudencial para o Crédito a Pessoas Singulares explicou de forma clara porque era necessário limitar maturidades, impor rácios de esforço máximos e restringir o montante que os bancos podem financiar. Estas regras surgiram num contexto de forte crescimento do crédito, taxas de juro historicamente baixas e risco real de que as famílias assumissem compromissos que não suportariam quando o ciclo económico se invertesse.

Os resultados destas medidas estão documentados no Relatório de Acompanhamento Macroprudencial de 2023. A análise mostra que o rácio de esforço dos novos contratos estabilizou em níveis sustentáveis, a maturidade média diminuiu e o rácio LTV se manteve controlado, evitando níveis de alavancagem próximos dos registados antes de crises anteriores. Além disso, a taxa de incumprimento permaneceu historicamente baixa, mesmo durante o choque de subida de taxas Euribor, o que confirma que estas medidas atuaram como um travão eficaz ao risco sistémico.

Na minha perspetiva, este enquadramento aumentou a responsabilidade no acesso ao crédito. A inflação dos últimos anos, com aumentos acumulados e repetidos no cabaz alimentar, e a rápida subida das taxas de juro mostram o risco que seria ter famílias com 60% do rendimento comprometido em prestações, como acontecia antes de 2018. Sem estes limites, a pressão sobre os orçamentos familiares teria sido insustentável e a taxa de incumprimento seria certamente mais elevada. Também a limitação das maturidades revelou prudência. Contratos de 45 ou 50 anos aumentavam de forma significativa o custo total do crédito e prolongavam responsabilidades até fases da vida em que o rendimento tende a estabilizar ou reduzir, enquanto as despesas com saúde e apoio pessoal aumentam.

A proposta de financiar 100% para todos deve, por isso, ser analisada com rigor. A entrada própria é um mecanismo importante de poupança, compromisso e proteção para o consumidor. Quem poupa para a entrada demonstra capacidade de adaptação e estabilidade financeira, além de reduzir o risco de abandono da responsabilidade de pagamento. Mesmo que o banco esteja protegido por garantias, processos judiciais longos e imóveis devolvidos em mau estado representam perdas reais.

Ainda assim, existem aspetos que podem evoluir. A análise bancária continua a ser excessivamente conservadora em áreas onde o mercado de trabalho mudou de forma estrutural. A valorização de rendimentos complementares, como subsídios de alimentação, deslocação ou educação, poderia ser mais abrangente. Os trabalhadores independentes continuam a ser avaliados com critérios desajustados, mesmo quando apresentam rendimentos estáveis. E a vantagem atribuída aos contratos sem termo precisa de ser reequilibrada, sobretudo numa economia onde a estabilidade laboral tradicional é cada vez menos comum e muitos setores funcionam estruturalmente com contratos a termo. Também faria sentido rever a diferença entre o LTV da compra e o da avaliação, bem como os impostos associados à aquisição e ao financiamento, que continuam elevados e dificultam o acesso inicial.

O debate sobre o financiamento a 100% deve ser feito com profundidade e sustentado em dados. As medidas de 2018 provaram ser eficazes, protegeram famílias e sistema financeiro e evitaram que a subida das taxas de juro se transformasse numa crise de incumprimento. Alargar o financiamento integral pode parecer uma solução rápida, mas exige prudência, equilíbrio e visão de longo prazo.

Se queremos soluções sustentáveis para o acesso à habitação, temos de olhar para todo o sistema, e não apenas para a porta de entrada do crédito.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

A interceção de comunicações constitui um dos meios de obtenção de prova mais intrusivos consagrados no ordenamento jurídico português.

Ao longo dos últimos anos — e particularmente nas semanas mais recentes — o debate público, frequentemente alimentado por perceções incompletas ou distorcidas, tem sustentado a ideia de que as escutas telefónicas são utilizadas pelo Ministério Público de forma ampla, recorrente e quase automática.

Contudo, uma análise rigorosa do regime jurídico demonstra precisamente o contrário: trata-se de um mecanismo excecional, rodeado de garantias constitucionais e de exigências processuais muito estritas.

A Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra, no artigo 34.º, o princípio da inviolabilidade das comunicações, proibindo qualquer ingerência por parte do Estado, salvo nos casos expressamente previstos na lei e sempre mediante autorização judicial. Assim, a interceção de comunicações configura uma exceção à regra geral, subordinada aos princípios da proporcionalidade (art. 18.º da CRP), e da necessidade.

Este enquadramento constitucional estabelece limites materiais e formais claros, condicionando o legislador e impondo um grau elevado de controlo judicial.

O regime jurídico das escutas encontra-se fundamentalmente previsto nos artigos 187.º a 189.º do Código de Processo Penal (CPP).

O artigo 187.º, n.º 1, define um elenco taxativo de situações em que a interceção é permitida. Entre os crimes que podem justificar escutas incluem-se: terrorismo; criminalidade organizada; tráfico de estupefacientes; corrupção; homicídio; outros crimes puníveis com pena de prisão superior a 3 anos, quando a prova seja impossível ou muito difícil de obter por outros meios.

Trata-se, portanto, de um universo restrito que contraria frontalmente a perceção de que as escutas são um instrumento de uso generalizado pelo Ministério Público.

Nos termos do artigo 187.º, n.º 3, as escutas só podem ser autorizadas mediante despacho judicial fundamentado, que deve: explicitar a necessidade e adequação da medida, justificar a sua finalidade, indicar a duração autorizada (máximo de 3 meses, prorrogável) e demonstrar que não existe meio menos gravoso para alcançar o mesmo resultado probatório.

No que concerne à execução prática, verificamos que também está dependente de um procedimento exigente.

Nos termos do artigo 188.º do CPP, cabe ao órgão de polícia criminal (OPC) que realiza a interceção: lavrar auto de todas as diligências; elaborar relatório descrevendo as passagens relevantes, o seu conteúdo e o respetivo alcance; remeter, de 15 em 15 dias, ao Ministério Público: os suportes técnicos, os autos, e os relatórios elaborados.

O Ministério Público, por seu turno, deve submeter estes elementos ao conhecimento do juiz no prazo de 48 horas.

Na prática, trata-se de um processo altamente exigente. Consideremos, por exemplo, um inquérito a correr termos no DIAP de Santarém, investigado pela GNR. Os militares responsáveis pela investigação devem deslocar-se a Lisboa para proceder à gravação das comunicações e, posteriormente, regressar ao seu posto de trabalho para audição integral das sessões, selecionando apenas as que consideram relevantes para a prova dos fatos criminosos que se investigam.

Este trabalho implica horas de audição contínua, frequentemente em condições logísticas difíceis.

Depois desta seleção, o Ministério Público procede à audição das gravações selecionadas antes de as submeter ao juiz para validação que também as deve ouvir, para ordenar a transcrição e junção ao processo as conversações e comunicações que se consideram indispensáveis para fundamentar a aplicação de medidas de coação ou de garantia patrimonial, à exceção do termo de identidade e residência.

O procedimento é, portanto, complexo, moroso e altamente técnico — longe da imagem simplista transmitida por vezes no debate público.

A perceção popular de que “as autoridades podem escutar quem quiserem” assenta numa compreensão superficial do processo penal. A complexidade dos requisitos legais, a natureza excecional das escutas e o escrutínio judicial constante tornam impossível qualquer utilização arbitrária desta medida.

Contudo, também é verdade que o regime enfrenta dificuldades significativas: complexidade processual, vulnerabilidade jurídica das provas obtidas, frequentemente contestadas, desafios tecnológicos, com o uso crescente de aplicações encriptadas e os recursos humanos e materiais limitados das entidades que devem investigar os ilícitos criminais.

Num Estado de Direito, a interceção de comunicações deve permanecer uma exceção rigorosa, sujeita a controlo judicial robusto. Mas é igualmente indispensável que o regime seja capaz de acompanhar a evolução tecnológica e os desafios contemporâneos, garantindo simultaneamente a proteção dos direitos fundamentais e a eficácia da justiça penal.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.


Nos bairros do Porto, encontrámos três mulheres com 100 anos. Arminda, Balbina e Laura distinguem-se por terem tomado decisões fora da norma das épocas por que passaram, marcadas ora pelo silêncio imposto ao seu género, ora pela voz conquistada em democracia. Construíram caminhos, ergueram famílias e marcaram a história, mostrando que a verdadeira revolução também se escreve no quotidiano. E, sobretudo, também se escreve no feminino.

Balbina da Costa Osório

Senhora do seu nariz, enfrentou todas as críticas quando deixou marido e filhos e procurou a vida que desejava, longe da violência dos campos  e do casamento

Balbina nasceu a 5 de abril de 1925, na aldeia de Carreira, Famalicão. Por ser muito bonita e com receio de que um vizinho pudesse fazer-lhe mal, a família meteu-a num colégio interno. Colégio é um termo demasiado simpático para uma instituição que não lhe ensinou nem a ler nem a escrever, mas a pôs a trabalhar. Saiu de lá já adulta e seguiu o destino das mulheres da época: casar e ter filhos. Sem alternativa, mesmo para mulheres como Balbina que não viam na maternidade um princípio e um fim.

Balbina teve quatro filhos – Florinda, Maria, Isilda e Gabriel –, mas a sua vida no casamento foi marcada pelo sofrimento. Foi vítima de violência doméstica e era obrigada pelo marido a trabalhar nos campos, isolada. Teve os filhos um após outro, quase seguidos, sem desejar mais gravidezes, o que a deixava angustiada. O passado de que gosta de falar não é este, mas o que veio daqui para a frente.

Um dia, com coragem, decidiu mudar a sua vida. Entregou os filhos a várias famílias que considerou que cuidariam melhor deles do que ela própria ou do que o marido abusivo – uns foram para a Alemanha e os outros ficaram com familiares em Portugal – e, por volta de 1969, partiu sozinha para o Porto, onde foi viver no Bairro de Francos. Esta decisão marcou-a profundamente, pois foi sempre criticada por ter deixado os filhos, o que se revelaria um trauma e um peso que carregaria pela vida.

Fez de tudo ao longo da vida: partiu pedra para fazer cascalho, trabalhou numa lavandaria na Póvoa de Varzim e também como mulher a dias. Tirou a carta de bicicleta para poder deslocar-se para o trabalho. A ganhar o seu próprio dinheiro, fazia o que queria: ia a bailes no Porto, passeava com as amigas, ia à praia, era feliz.

Cenas de um século A carta de bicicleta, o casamento e os filhos, a vida independente no Porto, uma escolha com um peso social que carregou durante décadas. E agora a velhice, acompanhada por uma neta. “Estou velha, mas tenho cérebro”, diz

Conhecida como uma grande bailarina, alegre e bem-disposta, todos gostavam de dançar com ela, embora despertasse também muitas invejas. Teve namorados, mas o medo de engravidar novamente impedia-a de ter relações íntimas. “Era admirada nos bailaricos, dançava bem, mas dava-me ao respeito.” Para Balbina, amizade e companhia eram mais importantes do que sexo.

Mais tarde, depois de se divorciar do primeiro marido, casou-se de novo, desta vez com um homem que a respeitava e estimava. Recorda com humor que quando estava zangada com ele, colocava uma pedra na merenda que o marido levava para o trabalho.

Antes do 25 de Abril, diz, a vida era mais difícil e havia mais pobreza, “mas também havia mais respeito”, lamentando a transformação do Bairro de Francos que, de sossegado, passou a ter problemas de droga e outras confusões.

Mas continua a ser bem conhecida da vizinhança. “Aqui no bairro, dizem: ‘A velha nunca mais morre, ela mata todos e cá fica.’ Eu respondo: ‘Não mato ninguém, quem mata é Deus.’”

Nos últimos anos, enfrentou a doença da zona, que a deixou mais frágil. Abandonou o hábito de caminhar até à Boavista sozinha, onde rezava nas capelinhas, acompanhada pela sua cadela. Agora sai acompanhada pela neta Cátia. Fica por casa, tem um rádio para ouvir música e a missa. Já centenária, continua a dizer: “Estou velha, mas tenho cérebro.”

A neta, que herdou a sua beleza e a sua determinação, é a única pessoa da família com quem tem contacto e cuida dela. Cátia mostra grande admiração pela avó: “A minha avó era senhora do seu nariz. Desde que se separou, nunca mais ninguém abusou dela. Foi dura e viveu a vida que quis.”

Balbina tem vivido à sua maneira – com sofrimento, mas também com coragem, amizade, alegria e muita dança. “Perdi muita coisa, não tenho nada, mas sou feliz.”

Arminda de Araújo

Desenrascou-se na vida, com apenas 11 anos, para fugir à pobreza. O percurso de uma mulher que nasceu para cuidar

Nascida a 23 de abril de 1925, em Vila Verde, Braga, deixou a aldeia natal com apenas 11 anos e foi para o Porto, para casa de um tio. Desde pequena que sonhava com a cidade, onde acreditava que poderia aprender mais e fugir da pobreza da aldeia. No entanto, a realidade foi dura: a casa do tio era pobre e triste, pior até do que a vida no campo. O tio era alfaiate e vivia na Sé do Porto, uma zona humilde. Arminda ajudava no que podia, mas não gostava daquele ambiente.

Encontrava algum alento junto das irmãs mais velhas, que trabalhavam no Colégio Almeida Garrett, onde convivia com professores e aprendia. Porém, como era um colégio só de rapazes, o diretor mandou embora as irmãs para evitar “distrações”. Elas acabaram por ir trabalhar para Lisboa, onde tinham os namorados, ficando Arminda sozinha no Porto.

Curiosa e atenta, ouviu falar de uma casa de proteção para raparigas, na Rua de Oliveira Monteiro. Tinha 12 anos quando decidiu ir lá, mas disseram-lhe que era preciso pagar e não havia vaga. Informaram-na ainda de que havia uma família à procura de uma menina para cuidar de um bebé, na Rua de Faria Guimarães. Foi logo lá.

Ao chegar àquele palacete elegante, conheceu uma senhora jovem, muito bonita, de apenas 27 anos, que a conquistou de imediato. Embora procurassem uma rapariga de 16 anos, Arminda, com apenas 12, mentiu dizendo que ia fazer 16. Miúda e franzina, conseguiu ficar. Era exatamente ali que queria estar, parecia o cenário dos seus sonhos.

A família tinha já dois rapazes, mas Arminda ficou a cuidar da menina, que era bebé e a quem se afeiçoou profundamente. Essa amizade durou toda a vida – a “sua menina” faleceu no ano passado, com 82 anos. Arminda permaneceu naquela casa durante 17 anos, onde cresceu. “Quando cheguei não chegava aos móveis, mas com os anos fui lá chegando, e sempre tratada como parte da família”, conta.

Com o tempo, percebeu que não queria ser empregada doméstica a vida toda. Não queria ser como Amélia, a empregada mais antiga da casa. Procurou, então, melhores oportunidades – abordou uma amiga da “sua menina”, que era da família Pires de Lima, vizinhos do palacete, e com muito “jeitinho e em segredo”, pediu-lhe ajuda para arranjar um emprego. Conseguiu ingressar na Função Pública como empregada de uma escola e adorava cuidar das crianças.

Autodidata, aprendeu a ler e a escrever sozinha, com os livros dos meninos da casa onde trabalhou, perguntando quando não sabia. Mais tarde, preparou-se para o exame da quarta classe, com a ajuda de uma professora.

Aos 29 anos já trabalhava na escola da Praça da Alegria, no Porto. Nunca se casou, mas foi mãe. O grande amor da sua vida foi um rapaz que conheceu ainda adolescente, na rua onde trabalhava. Ele vinha do colégio com outros amigos e namoraram, mas ele acabou por ser obrigado a casar com outra rapariga que engravidou numa festa. Arminda sofreu muito com aquela notícia – apesar disso, mantiveram a paixão e o contacto até à morte dele.

Mãe solteira Arminda e o seu único filho, Manuel, que criou sozinha até à licenciatura deste. Mulher de garra, cheia de vontade de viver

Depois de ter começado a trabalhar na escola, Arminda alugou uma pequena casa para viver. Aos 35 anos, engravidou do homem que sempre amara. Apesar de nunca se ter divorciado da outra mulher, o pai do seu filho reconheceu e apoiou a criança. O pequeno Manuel foi a maior alegria da vida de Arminda, que o criou sozinha, com dedicação e sacrifício, mas sempre com independência e orgulho. “O meu ordenado dava para mim e para ele, eu sabia gerir bem o dinheiro, uma parte para as despesas, outra para guardar. Foi melhor assim: vivia livre com o meu filho, não tinha marido para aturar e para me dar ordens, gostava de ser independente…”, desabafa.

Em 1966, mudou-se para um apartamento em Paranhos, no Bairro do Outeiro, que arranjou com os seus conhecimentos na Câmara Municipal do Porto, um T2 onde vive até hoje. Ali criou o filho, garantindo-lhe os estudos até à universidade, onde se formou em Arquitetura.

Arminda foi empregada auxiliar numa escola até à reforma, aos 60 anos. Recorda com emoção o 25 de Abril, quando na escola o diretor fez uma festa. Tiraram as fotos de Salazar da parede, arrumaram-nas num armazém e sentiram a chegada da liberdade. “Quando fui trabalhar para a escola, apercebi-me de que havia muitas crianças com fome, lembro-me de um menino que roubava pão para levar aos irmãos. A zona das Antas era muito pobre, muitas ilhas e barracos, pessoas que vinham trabalhar para as fábricas. Davam na escola uma sopa que a Legião Portuguesa vinha entregar. Depois do 25 de Abril, a comida melhorou, entregavam lá até queijo muito cheiroso que vinha para fazer as sandes. Agora vive-se melhor, mas está a faltar educação. Os vizinhos mais novos não partilham nada, só os mais velhos é que se vão ajudando, a sociedade agora ficou mais individualista”, lamenta.

Após a reforma, dedicou-se a viagens, aos trabalhos manuais – tem as suas colchas de croché que mostra com muito orgulho – e ao convívio comunitário. Participou em excursões, organizadas pela Paróquia do Marquês e pela junta de freguesia, visitou a Madeira e Itália, sempre curiosa e entusiasta.

Mesmo na velhice, manteve-se ativa: aos 94 anos, venceu a corrida das mulheres das Antas, um feito de que se orgulha imenso.

Hoje, com 100 anos, continua a passear todos os dias. Sai do bairro, vai até à Faculdade de Economia, atravessa o parque, senta-se no banco que já considera “seu” e conversa com os estudantes. Continua a gostar de aprender.

Laura da Silva Paredes

No seu centenário, o bairro inteiro uniu-se para lhe fazer uma grande festa. A retribuição por uma vida de entrega à comunidade

Laura da Silva Paredes nasceu a 6 de maio de 1925 na Foz, Porto, mas em pequena foi viver para Famalicão. O pai, conhecido como cabo Paredes, era guarda e ficou doente, tendo sido internado no sanatório do Caramulo. A mãe, com sete filhos para criar e sem recursos, alugou uma casa em Famalicão, zona mais barata, e trabalhou nos campos para sustentar e educar sozinha toda a família. Fazia questão de que cada filho concluísse, pelo menos, a quarta classe.

Laura começou a trabalhar muito cedo, logo que acabou a quarta classe. Aos 10 anos, foi para Gaia servir como cozinheira numa casa de Valadares. Preparava as refeições para os criados ao meio-dia e, às 13h, levava os meninos à escola. Depois, às 14h, fazia a comida para os trabalhadores do campo. Muitas vezes não aguentava o peso do trabalho e a dureza dos patrões. Chegava a fugir até à estação de São Bento para apanhar o comboio para Famalicão, mas os patrões já sabiam onde a encontrar.

Aos 25 anos, decidiu deixar a vida de criada. Alugou um quarto na Rua Sá da Bandeira, no Porto, e começou a trabalhar numa fábrica de plásticos na Rua das Flores, onde ficou até se casar. Conta que os patrões tinham tudo em abundância, mas mandavam-na muitas vezes para a fila do pão com senhas. Quando este acabava, muitas famílias pobres ficavam sem nada. Laura, bondosa e rebelde, pegava no pão e dava-o às mulheres com filhos. Costuma dizer: “Roubava aos ricos para dar aos pobres.”

Sempre foi generosa. Ficou com um menino de dias que a mãe ia entregar na roda, o seu primeiro filho adotivo, levou-o para Famalicão e disse à sua mãe que era o seu filho. A mãe do menino trabalhava no campo e ia todos os fins de semana ver o filho.

Força Senhora de uma bondade e de uma generosidade imensas, teve sete filhos e adotou mais dois. Nunca faltou aos vizinhos, a quem costurava as mortalhas, amparando-os mesmo na morte

Muito independente, quando Laura começou a namorar disse ao namorado que tinha um filho adotivo, que acabou por viver com o casal e foi estudar para o Colégio dos Carvalhos. Laura casou-se aos 26 anos, numa cerimónia coletiva organizada pelo padre, que juntou vários casais da “ilha”. Ela foi bem vestida, mas o marido chegou de macacão, vindo diretamente do Coliseu, onde trabalhava.

Durante os primeiros anos de casamento, Laura teve filhos quase todos os anos, num total de sete, sendo que três morreram ainda bebés. Depois, adotou outro menino seu vizinho, negligenciado pela mãe. Mais tarde, devido a um problema nos pulmões, o médico avisou-a de que não poderia ter tantos filhos. O marido, cuidadoso, passou a usar as chamadas “camisinhas de Vénus”.

Laura sempre manteve uma disciplina rígida com os filhos: todos limpos, bem vestidos e obrigados a concluir a quarta classe. Esse rigor vinha do trauma de ver a mãe, analfabeta, a ter de pagar para lhe lerem as cartas. Uma vez, veio uma carta e ela não tinha dinheiro para pagar a quem lha lesse. Guardou-a. Quando finalmente alguém a pôde ler, era uma missiva a comunicar a morte do marido que estava internado no Caramulo. “Não lhe fez o funeral e foi muito triste”, conta-nos.

Laura trabalhava no campo, costurava, fazia roupa e lençóis para oferecer aos vizinhos mais pobres, tinha a preocupação de eles terem o seu lençol para a doença e para a morte, especialmente em funerais, pois na época era costume cobrir os mortos com lençóis brancos com renda. Era ela quem lavava e preparava os corpos dos vizinhos falecidos.

Mulher de grande força, dizia muitas vezes ao marido: “Se me bateres, vou embora. Consigo sustentar os filhos sozinha.” Ficou conhecida como “Laurinha do Coliseu”, já que o marido trabalhava nesse espaço. Viviam no Silo Auto e, em 1958, mudaram-se para o Bairro Rainha D. Leonor, em Lordelo.

Laura sempre foi próxima da comunidade, ajudando vizinhos, cuidando de doentes e apoiando famílias necessitadas. O marido vinha de uma família ligada ao movimento comunista. Um dos irmãos foi preso e enviado para o Tarrafal. Laura escondia livros proibidos e chegou até a escondê-los debaixo de um caixão, durante um funeral, para enganar a polícia política.

Mesmo grávida, desafiava as crianças da Rua de Santa Catarina para corridas – e ganhava sempre. Gostava de cantar o Hino de Portugal, mas nunca foi de manifestações físicas de afeto: não gostava de beijos e nunca deixou que os filhos a beijassem. Mas tinham de beijar o pai quando iam dormir.

Viveu 55 anos com o marido, de quem cuidou até ao fim. Sofreu a perda de mais dois filhos e de um neto, mas sempre mostrou força perante a dor. Mudou do prédio para uma casa já com 88 anos, mas sentiu falta da vida antiga, quando comunicava com os vizinhos através de uma corda com a qual passava coisas para os andares.

Tinha campos onde cultivava e ia com os filhos para a lixeira apanhar bocadinhos de cobre para fazer mais algum dinheiro. Era homem e mulher da casa, mandava em tudo.

Repete uma ideia que encontramos nestas três centenárias: “Antes do 25 de Abril havia mais pobreza, mas também respeito, não sei se por medo. Depois, não me sentia à vontade para sair à rua, ir à Baixa do Porto, as pessoas não estavam preparadas para a liberdade, não sabiam distinguir liberdade de irresponsabilidade. Foi uma nova adaptação.”

Hoje tem o hábito de beber um cálice de vinho do Porto e comer um bolinho à tarde. Segundo ela, esse é o segredo da sua longevidade.

Quando completou 100 anos, o bairro inteiro fez-lhe uma festa, com cartazes feitos pelas crianças. Todos, dos mais velhos aos mais novos, mostram um enorme carinho por Laura. Continua a gostar de conviver com os jovens, de ouvir música e de recordar as histórias da sua vida de luta, trabalho e solidariedade.

A História pode não se repetir, fielmente, mas acaba sempre por ter muitas semelhanças em diversos períodos. Os romanos, por exemplo, eram fascinados pelos seus antepassados. E, muitos séculos depois, “nós também temos um fascínio semelhante pelos nossos antepassados romanos”, conforme explica quem, através de vários livros e de muitos anos de estudo, sabe realmente daquilo que fala: o canadiano Ross King, de 63 anos, que acaba de publicar em Portugal o livro Breve História da Roma Antiga (edições Presença). E tem uma explicação para isso: “Eles ajudam-nos a compreender de onde viemos.” Essa é, aliás, uma das funções dos historiadores e dos divulgadores da História: ajudar os seus contemporâneos a compreender melhor o mundo em que vivem, com base naquilo que fizeram os seus antepassados. No caso da Roma Antiga, como explica o também autor de livros sobre Maquiavel, Leonardo da Vinci e a cidade de Florença (onde promove, por vezes, passeios históricos e turísticos, como guia), há razões suplementares para o nosso fascínio acerca daquele que foi um dos maiores impérios sobre a Terra: “Grande parte do nosso mundo – as nossas instituições políticas, os nossos edifícios e, claro, a nossa língua – foi moldada pelos romanos.” Esta entrevista acaba, assim, por se tornar uma viagem ao passado com grandes repercussões no nosso presente – e, porventura, também no nosso futuro coletivo.

Qual é a maior dificuldade – mas também o desafio – de tentar condensar séculos de História numa narrativa breve, mas precisa? Quais são os principais factos e ideias que pretende transmitir ao leitor?

Livro
Breve História da Roma Antiga

Desde os mitos que contam a fundação de uma cidade que se tornaria lendária até ao dramático declínio do império, o livro de Ross King ajuda a explicar a história surpreendente da Roma Antiga – uma das civilizações mais fascinantes da História.

Condensar centenas de anos de História num livro curto é certamente um desafio. Em muitos aspetos, teria sido mais fácil escrever uma história “mais longa” da Roma Antiga, porque isso exigiria uma seleção e uma curadoria muito menos cuidadosas. Mas não teria sido mais fácil para o leitor! O que eu queria fazer era dar às pessoas uma noção de quem eram os romanos, por que tiveram sucesso e o que funcionou (ou não funcionou) para eles. Queria analisar o seu legado – por que razão é importante estudar os romanos se queremos compreender-nos a nós próprios, à nossa própria cultura e às nossas instituições. Mas também espero dar aos leitores descrições, tão vívidas quanto possível, das personalidades envolvidas – não apenas os imperadores, mas também as pessoas comuns, como escravos e mulheres.

Por que razão a Roma Antiga continua a fascinar leitores e historiadores ao longo dos tempos?

O historiador Políbio escreveu, no século II a.C., que era impossível não se interessar por um povo que havia conquistado a maior parte do mundo conhecido. O mais surpreendente é que ele escreveu isso mais de um século antes de os romanos fazerem conquistas ainda maiores. A proeza militar romana e a liderança inspirada (ou, nalguns casos, a liderança enlouquecida de imperadores como Calígula ou Nero) são algo que sempre nos fascinará. Mas também nos interessamos pelos romanos porque grande parte do nosso mundo – as nossas instituições políticas, os nossos edifícios e, claro, a nossa língua – foi moldada por eles. Os romanos eram fascinados pelos seus antepassados, cujos retratos mantinham nas suas casas. E nós temos um fascínio semelhante pelos nossos antepassados romanos. Eles ajudam-nos a compreender de onde viemos.

Para as superpotências modernas, Roma oferece uma parábola moral e política: os impérios caem quando a ambição supera os princípios e quando a cidadania deixa de inspirar sentimentos de responsabilidade mútua

Os muitos livros e filmes ficcionais sobre esse período ajudaram a explicar a História ou, em muitos casos, contribuíram para a perpetuação de mitos e falsidades?

Adoro filmes e romances sobre a Roma Antiga e, na maioria dos casos, os escritores fizeram uma pesquisa cuidadosa das fontes – os historiadores antigos que escreveram sobre Roma. O único problema é que muitos desses historiadores antigos eram terrivelmente tendenciosos, e é muito fácil acreditar que os seus relatos horríveis e escandalosos (sobre Calígula, Nero ou Cómodo, por exemplo) são a verdade nua e crua, em vez do que, em muitos casos, eram esses escritos: propaganda. Às vezes, eles fazem-me pensar na grande citação de Oscar Wilde: “Dar uma descrição precisa do que nunca aconteceu é a ocupação adequada do historiador.” Mas muitas dessas histórias são simplesmente boas demais – ou horríveis demais – para não serem contadas.

Na sua opinião, quais foram as chaves para o êxito de Roma na transição de cidade-Estado para império?

O sucesso de Roma na expansão baseou-se menos na conquista militar do que na genialidade da incorporação. Em vez de simplesmente subjugar os povos derrotados, Roma vinculou-os a si mesma, através de um sistema flexível de alianças e de cidadania graduada. As comunidades conquistadas mantiveram as suas instituições políticas e religiosas locais e, em troca, foram obrigadas a fornecer tropas e a pagar impostos. Com o tempo, a identidade romana tornou-se um privilégio político, em vez de algo relacionado com a etnia ou com o direito de nascença. Essa inclusão criou um vasto grupo de soldados e administradores pessoalmente interessados no sucesso romano. Antigos inimigos tornaram-se partes interessadas na sociedade romana.

O sistema jurídico romano, com os seus princípios de equidade, precedentes e direitos codificados, tornou-se a base do direito civil europeu e continua a moldar a jurisprudência moderna

Qual foi o papel da organização militar e da engenharia na consolidação do poder romano?

A ascensão de Roma era indissociável da sua organização militar e do seu génio de engenharia, ambos ligados entre si. A legião romana, por exemplo, não era apenas uma força de combate, mas funcionava como um sistema móvel de construção. As legiões eram capazes de construir estradas, pontes, fortificações e obras de cerco. A disciplina, o treino e a adaptabilidade permitiam-lhes operar durante todo o ano e manter os territórios conquistados em segurança. A Via Ápia, iniciada em 312 a.C., para ligar Roma a Cápua e, mais tarde, a Brindisi, exemplificou como as infraestruturas serviam tanto para controlo militar como administrativo: permitiam a rápida movimentação de tropas, abastecimentos e informações, unindo Itália sob o domínio romano. Redes semelhantes estenderam-se por todo o império, com marcos, aquedutos e acampamentos fortificados a perpetuar a impressão física da ordem romana. A engenharia e o exército trabalharam, assim, em conjunto, criando uma estrutura duradoura de comunicação e controlo que sustentava a unidade política e cultural de Roma.

Em que medida o pragmatismo político de Roma explica a sua longevidade?

Roma teve uma longevidade extraordinária, se considerarmos a data tradicional da fundação da República Romana como 509 a.C. e a queda de Roma como 476 d.C. Este extraordinário período deveu–se em grande parte à capacidade de adaptar as instituições às novas realidades sem abandonar as tradições reverenciadas. O sistema da república inicial de magistraturas partilhadas, travões e contrapesos e eleições anuais promoveu o compromisso e impediu a tirania, enquanto a autoridade do senado garantiu a continuidade durante as mudanças. Quando a expansão pressionou a velha ordem, Roma absorveu pragmaticamente novos povos através de alianças, colónias e extensão da cidadania. Até mesmo os conflitos civis produziram inovação: a criação do principado, por Augusto (em que o imperador detinha a autoridade suprema, mas mantinha as instituições da antiga República Romana, como o senado), preservou as formas republicanas, ao mesmo tempo que forjou a estabilidade imperial. Essa disposição para reformular instituições antigas sob novas formas permitiu que Roma sobrevivesse a mudanças que teriam destruído Estados mais rígidos. A estabilidade para os romanos não veio de ideais imutáveis, mas de instituições flexíveis o suficiente para se adaptarem e acomodarem.

Quais foram as contribuições mais duradouras da Roma Antiga para a nossa organização social, cultural, jurídica e política?

Quanto tempo temos? Há tantos legados… Mas talvez o legado mais duradouro de Roma resida nas suas instituições de direito, cidadania e ordem cívica. O sistema jurídico romano, com os seus princípios de equidade, precedentes e direitos codificados, tornou-se a base do direito civil europeu e continua a moldar a jurisprudência moderna. Politicamente, a constituição mista de Roma – combinando monarquia, aristocracia e democracia – influenciou profundamente pensadores posteriores, de Cícero a Maquiavel e Montesquieu, bem como os fundadores de repúblicas modernas, como os Estados Unidos da América. Depois, há a estrutura das nossas cidades. Os romanos introduziram instituições, como o fórum, os banhos públicos e o anfiteatro, que definiram a vida pública como uma esfera partilhada e regulamentada. Por fim, a língua. A grande maioria do vocabulário e da estrutura gramatical das línguas românicas, como o português e o espanhol, deriva do latim.

A Roma imperial forneceu o arquétipo para quase todos os impérios que se seguiram. A sua combinação de autoridade central, administração provincial e autonomia local ofereceu um modelo duradouro de controlo sobre vastos territórios

Que papel desempenharam as mulheres e as classes mais baixas na construção da Roma que conhecemos?

Infelizmente, os escravos estiveram envolvidos na construção de grande parte da Roma que conhecemos hoje. No século I a.C., na época da fundação do Império Romano, um terço de toda a população da península italiana era escrava. Trabalhavam em casas, quintas, minas e oficinas e eram essenciais para a construção de arquitetura monumental, como o Coliseu, os banhos e os aquedutos. Escravos qualificados podiam tornar-se arquitetos, professores ou secretários, e alguns, após a alforria, alcançaram prosperidade como livres. Mas a vida de muitos era mais do que hedionda.

As mulheres, tal como os escravos, eram indispensáveis para o funcionamento da sociedade romana, embora fossem em grande parte excluídas do poder formal. Apesar de lhes terem negado direitos políticos, as mulheres exerciam influência dentro da família e por meio da riqueza, do patrocínio e da religião. Matronas como Cornélia, mãe dos Gracos, Tibério e Caio, eram elogiadas pela sua virtude e pela sua educação, enquanto mulheres imperiais como Lívia, Agripina e Júlia Domna exerciam autoridade política genuína nos bastidores, moldando a sucessão dinástica e a imagem pública.

A organização da Roma imperial foi um modelo seguido por impérios posteriores?

A Roma imperial forneceu o arquétipo para quase todos os impérios que se seguiram. A sua combinação de autoridade central, administração provincial e autonomia local ofereceu um modelo duradouro de controlo sobre vastos territórios. Os governantes posteriores – de Carlos Magno e dos imperadores do Sacro Império Romano aos sultões otomanos – olharam para Roma em busca de legitimidade e governança prática. Os políticos e escritores britânicos dos séculos XVIII e XIX invocaram repetidamente Roma como o espelho histórico da Grã-Bretanha. O historiador Thomas Babington Macaulay elogiou a disciplina e o dever romanos como modelos para a virtude britânica. Nos Estados Unidos da América, Samuel Adams afirmou orgulhosamente que, ao lutar contra os britânicos, os americanos tinham descoberto “o espírito de Roma”. Na década de 1790, Jenkins Hill, em Washington DC, foi rebatizada Capitol Hill – uma ligação óbvia entre a nova república americana e a Roma Antiga.

Quais foram as principais razões para a queda do Império Romano?

Mais uma vez, quanto tempo temos? Um historiador alemão na década de 1980 contou 210 razões diferentes apresentadas em várias fontes – tudo, desde terramotos e pragas até gula e hedonismo. Não havia uma única razão, é claro. O declínio e a queda foram o resultado de múltiplas causas, entre as quais se destacam a ascensão do cristianismo, invasões de tribos como os ostrogodos e os vândalos e uma liderança deficiente. Recentemente, os historiadores têm-se interessado pelo papel desempenhado pelo clima. Estudos sobre glaciares, estalactites e sedimentos marinhos sugerem que o império cresceu e declinou de acordo com as condições climáticas. Certos eventos climáticos adversos e imprevisíveis levaram a uma série de problemas económicos e políticos incontroláveis.

Muitos observadores veem semelhanças entre o declínio romano e os desafios contemporâneos no Ocidente. Até que ponto essa comparação é válida?

Bem, as comparações entre o declínio de Roma e os desafios enfrentados pelo Ocidente moderno são tentadoras, mas devem ser tratadas com cautela. Frequentemente são traçados paralelos: recursos sobre-explorados, imigração em massa, polarização política, desigualdade económica e perda da virtude cívica. Tal como a Roma tardia, as sociedades contemporâneas podem parecer sobrecarregadas pela burocracia, distraídas pelo luxo e divididas por fações rivais. No entanto, as analogias resistem à simplificação excessiva. A queda de Roma foi precipitada pela fragilidade estrutural num mundo pré-industrial. O “declínio” atual desenrola-se num contexto global e tecnológico muito distante do que existia no antigo Mediterrâneo. Ainda assim, a lição moral permanece: o enfraquecimento do propósito comum e da cidadania em Roma oferece um aviso contra a complacência e a divisão. A comparação é válida menos como previsão histórica do que como metáfora cultural: a prosperidade e a estabilidade dependem, para nós como para os antigos romanos, da renovação da coesão cívica que sustenta sociedades complexas.

O estudo de Roma serve principalmente como um exemplo do que preservar ou corrigir na nossa civilização? E é uma lição para todas as superpotências?

As conquistas de Roma em direito, cidadania, engenharia e governança continuam a ser os alicerces estruturais da civilização ocidental. No entanto, Roma também ensina o que o poder descontrolado, a complacência e a desigualdade grosseira podem destruir. O declínio de Roma não resultou apenas da invasão, mas da erosão do propósito comum e do aumento do fosso entre ricos e pobres. Para as superpotências modernas, Roma não oferece um modelo simples, mas uma parábola moral e política: os impérios caem quando a ambição supera os princípios e quando a cidadania deixa de inspirar sentimentos de responsabilidade mútua. Estudar Roma é, em última análise, estudarmo-nos a nós próprios – aprender como uma civilização pode alcançar a grandeza e como a força do poder reside, em última análise, na renovação da virtude cívica.

Apesar da conhecida expressão afirmar que “nada é mais certo neste mundo do que a morte”, poucos querem falar, ou sequer pensar nela. Para muitas pessoas, talvez para a maioria de nós, que crescemos nesta cultura e tempo, que progressiva e tendencialmente valoriza os aspetos materiais associados ao ter coisas, títulos, cargos e poder, e menos os que se referem à nossa existência enquanto pessoas, seres de relações, de fragilidades, de afetos, esse assunto é um “elefante na sala”. E isso nem sempre foi assim, mas a perda de influência da religião e as profundas e rápidas transformações verificadas na nossa sociedade levaram a que se estabelecesse o primado da quantidade de vida, como mais um aspeto a acrescentar, um número que se pretende grande. Noutros tempos, os mortos ficavam em casa a ser velados por familiares e amigos, e era habitual que as crianças integrassem essas cerimónias, ao contrário de agora, em que são afastadas, com o argumento de as “protegermos”.

Hoje tudo é diferente, e essa diferença faz com que seja omitido, aos mais novos, uma realidade que é natural: a morte faz parte da vida! E é dessa forma que tem de ser encarada. Se assim for, uma melhor compreensão da situação possibilitará a identificação de aspetos positivos num processo que está associado a sentimentos negativos, que são normais, como a tristeza. Quando o assunto aflora, o que acontece com frequência, pela morte de um familiar, de um animal de estimação, pela visualização de um qualquer conteúdo num dos diversos recursos disponíveis ou doutra maneira, os mais velhos reagem com insegurança e mostram inabilidade na gestão do problema. Na melhor das hipóteses, inventam uma história mais ou menos credível, mas ainda assim, falsa, o que pode, mais à frente, vir a comprometer a confiança em quem o fez, ainda que com a melhor das intenções. Ora, a verdade é essencial para um desenvolvimento harmonioso de qualquer ser humano, em qualquer fase da sua vida. E essa verdade pode assumir várias formas, adequadas à sua capacidade de compreensão e interesse, sendo que será sempre a melhor e mais ética estratégia. Nesse sentido, a questão que emerge está relacionada com a forma em como o fazemos, porque todos queremos o melhor para os nossos filhos.

Foi com esse objetivo que escrevi Mel, a elefante na sala, para ajudar, com verdade, a desocultar este assunto tabu, de uma forma acessível, educativa e sensível, criando uma envolvência que atraia a atenção e o interesse dos mais jovens, guiando-os numa descoberta que está rodeada de coisas positivas, como as recordações, que devem ser valorizadas para uma integração total das diferentes dimensões do fenómeno da morte e do morrer, de modo que a matéria deixe de ser difícil de abordar. O livro não tem respostas para todas as perguntas, porque também não podia ter. É um estímulo para falar sobre o tema, que tão preciso é.

Do meu ponto de vista, a visão negativa associada à morte, tem sido um obstáculo estrutural ao desenvolvimento dos Cuidados Paliativos, em Portugal. Não sendo verdade que os Cuidados Paliativos se restrinjam à morte – antes pelo contrário, eles centram-se na vida, na qualidade de vida até ao último momento da nossa existência, e assistem, também, no processo das perdas e da morte – ao haver essa associação, isso acaba por comprometer a desejável exigência social por esses cuidados, absolutamente essenciais.

Dessa forma, ao contribuirmos para melhorar a literacia sobre estas questões, talvez consigamos, no futuro, ter acesso a mais e melhores cuidados de saúde numa área tão carenciada, porque todos os dias há crianças, jovens, adultos e idosos a necessitarem destes cuidados, diferenciados e competentes.

A Europa decidiu apertar as regras para a Inteligência Artificial (IA) e Portugal tenta agora recuperar o atraso. Na União Europeia, o grande motor desta mudança é o AI Act, aprovado em 2024, a nova lei que define como a IA pode ser usada. Mas qual poderá ser o impacto desta medida?

Trata-se da primeira lei do género no mundo e organiza a tecnologia por níveis de risco. O que for considerado perigoso, como manipulação de pessoas ou pontuações sociais de cidadãos (social scoring), passa a ser proibido. O que tiver impacto sério na vida das pessoas, como sistemas usados na saúde, segurança ou decisões de contratação em processos de recrutamento, terá regras apertadas de segurança, supervisão humana e transparência. Tecnologias simples, como chatbots ou jogos, apenas precisam de informar claramente que estão a usar IA.

As regras estão a entrar em vigor de forma faseada e a Europa está a criar espaços de teste supervisionados, onde empresas, especialmente pequenas e médias, podem experimentar novas soluções de IA de forma segura, recebendo orientação das autoridades antes de as lançar no mercado. São ambientes controlados em que o objetivo é permitir inovação sem risco imediato de multas ou sanções por incumprimento, desde que cumpram certas regras básicas de transparência e segurança durante o teste.

Nos diversos países europeus, a implementação está a avançar a ritmos diferentes. Cada Estado-Membro tem de escolher uma autoridade responsável para vigiar e orientar o uso da IA, mas, até meados de 2025, apenas cerca de sete países tinham concluído esta escolha. França, Alemanha e Itália avançaram mais cedo, criando exemplos concretos: a Comissão Nacional de Informática e Liberdades (CNIL), em França, já publica guias de transparência e avaliação de risco em sistemas de alto risco, como recrutamento e reconhecimento facial; na Alemanha, alguns estados auditam sistemas de IA em saúde e infraestruturas críticas; já a Itália lançou orientações para IA no setor público e em serviços essenciais, com monitorização de impacto em direitos fundamentais. No entanto, outros países ficaram para trás, criando um mapa europeu desigual em preparação e supervisão.

No caso português, a decisão chegou tarde. Só em setembro de 2025 é que Portugal confirmou que será a ANACOM a liderar a supervisão da IA, em articulação com várias entidades setoriais ligadas à saúde, segurança, direitos dos consumidores e outras áreas sensíveis. O país falhou o prazo inicial dado por Bruxelas e agora precisa de recuperar tempo. A ANACOM terá de ganhar capacidade técnica rapidamente, esclarecer regras, apoiar empresas e informar os cidadãos. Portugal continua com uma estratégia nacional de IA menos desenvolvida do que a de outros países europeus, o que aumenta a urgência de agir.

Para consumidores e empresas, o impacto será visível. A lei pretende proteger pessoas e reforçar a confiança. Isto traduz-se em mais transparência quando interagimos com sistemas automáticos, limites claros ao uso de tecnologias que possam espiar, manipular ou discriminar e responsabilidades mais definidas quando algo corre mal. Serviços essenciais como saúde, transportes ou educação passarão a ter sistemas de IA mais controlados e auditados. Para as empresas, haverá custos e trabalho adicional, mas também maior segurança jurídica. Quem se adaptar cedo ganha vantagem num mercado europeu que valoriza confiança e segurança técnica. A maior ameaça para Portugal é transformar estas regras em burocracia pesada que atrasa o País em vez de o fazer avançar.

A Europa lidera a corrida global à regulação da IA, e Portugal já está a alinhar, embora com atraso. O desafio agora é fazer a máquina funcionar depressa e bem. Se conseguir, estas novas regras podem aumentar a confiança dos consumidores, impulsionar empresas e pôr o país numa posição mais competitiva. Num setor que evolui à velocidade da própria tecnologia, ficar para trás não é apenas um risco. É uma escolha.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

O “Corolário de Trump”, vertido na nova Doutrina de Segurança Nacional dos Estados Unidos, consagra uma inversão total — de 360 graus — da política externa americana e do seu lugar no mundo. Em cinco movimentos, muda tudo.

  1. Washington assume sem rodeios o Hemisfério Ocidental como zona exclusiva de influência estratégica. América Latina incluída. Regressa, em versão bruta, a velha “Doutrina Monroe”. Neo-imperialismo sem disfarces.
  2. A NATO passa a ser um incómodo. O compromisso automático de defesa da Europa (Artigo 5.º) fica politicamente esvaziado. Os aliados que paguem a sua própria segurança. Em plena guerra na Ucrânia instala-se a instabilidade estratégica. O foco desloca-se para a China. Japão e Coreia do Sul entram na mesma lógica de afastamento. Taiwan transforma-se numa simples ficha de troca.
  3. Cai definitivamente o mito da exportação da democracia. As relações internacionais passam a ser puramente transacionais. Os regimes autoritários ficam legitimados. A prioridade é a estabilidade: com a Rússia, com quem for.
  4. A migração (num país de migrados) é elevada ao patamar do terrorismo e de crime organizado. A segurança nacional passa a ser definida em termos culturais e identitários. «Coesão cultural», «valores tradicionais» e «identidade nacional» tornam-se os novos pilares do Estado securitário.
  5. A Europa, como continente e como projeto político, entra numa trajetória de irrelevância nos próximos 20 anos — ou menos. O declínio é demográfico, político e civilizacional. A subjugação da maioria europeia a processos não democráticos já está em marcha.

Resta uma boa notícia: já só faltam três anos para Trump sair da Casa Branca!

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

No coração do Alentejo, Viana do Alentejo ocupa uma posição discreta no mapa, mas bastante privilegiada para quem procura compreender a profunda relação entre História, tradição, paisagem e um quotidiano rural quase em extinção que ainda marca o dia a dia desta região. A vila ergue-se a 27 quilómetros de Évora, num território marcado pela suavidade do relevo e por extensas manchas de olival e montado, que dão à aproximação pela estrada nacional uma ambiência bastante cinematográfica.

Ao longe, avista-se já a silhueta da torre da igreja matriz e o perfil regular das muralhas do castelo, os dois monumentos mais emblemáticos de Viana, que, apesar da reduzida escala, guarda um património singular de vários períodos da História portuguesa e, nalguns casos, até estruturantes para a identidade local.

Industrial A antiga fábrica de farinhas dos Moinhos de Santo António é desde o verão o Moagem Industrial Lodge

Restaurar a memória com requinte

A Moagem dispõe de 17 quartos distintos, distribuídos por várias tipologias, todos equipados com camas Hästens, pavimento radiante, ar condicionado e ligação digital. Nas categorias superiores e premium, os traços industriais permanecem visíveis através de estruturas metálicas e equipamentos preservados, reforçando a ligação com o passado. As suítes estão organizadas em módulos independentes que favorecem a privacidade e funcionam como pequenas unidades familiares. Já a penthouse ocupa a cota mais elevada do edifício e possui duas varandas amplas com vista para a paisagem alentejana. A área de bem-estar prolonga a experiência com uma piscina interior aquecida com circuito hidrotermal, incluindo também sauna, banho turco e sala de massagens. A unidade acolhe ainda peças de arte contemporânea de vários autores, instaladas nos espaços comuns e nos corredores que outrora serviam o funcionamento industrial. O projeto assume também uma dimensão ambiental, materializada em painéis fotovoltaicos, sistemas de reaproveitamento de águas pluviais, bombas de calor e soluções de isolamento térmico que reduzem o consumo energético.

Moagem Industrial Lodge > R. do Lagar Novo, 3, Viana do Alentejo > T. 92 405 6665 > Quarto duplo a partir €165

Outro edifício que salta à vista, pela escala e pela altura numa localidade de casario branco e rasteiro, é o da fábrica de farinhas dos Moinhos de Santo António, outrora peça essencial da economia local e que desde o verão acolhe o Moagem Industrial Lodge. A reabilitação manteve a estrutura original de 1949 e integrou equipamentos fabris que permanecem como testemunho do passado. A intervenção do arquiteto Gonçalo Queirós Carvalho optou por uma linguagem estética que revela o passado em vez de o ocultar, dando uma continuidade à história do edifício, que funcionou até à década de 80 do século passado, sem o transformar num mero cenário museológico.

Saltam à vista a estrutura metálica, os vãos amplos e os materiais brutos, articulados com uma linguagem contemporânea de linhas depuradas. A luz natural atravessa os espaços com generosidade e dá relevo ao contraste entre ferro, madeira e pedra, mantendo a memória industrial como elemento central. A Moagem funciona assim como a base perfeita de descoberta, não só pela proximidade do centro histórico, permitindo chegar ao castelo em poucos minutos a pé, nem apenas pelo conforto ou pela estética depurada, mas sim pela forma como estabelece uma ligação entre memória e território, convidando a explorar o que começa logo ali à porta.

Barroco O Santuário de Nossa Senhorade Aires é um importante centrode peregrinaçãodesde o século XVIII.A Casa dos Milagres guarda uma notável coleção de ex-votos

A própria localização da vila reforça esta ideia de ponto de partida, mas também de chegada – Évora fica a cerca de 30 minutos de carro e as praias do Alqueva a apenas 40. Viana do Alentejo situa-se numa zona onde as distâncias, mesmo as mais longas, parecem curtas e a paisagem se altera de forma subtil e em movimentos lentos, sucedendo-se planícies agrícolas, o sempre presente montado e pequenas elevações que, aqui e ali, alteram o relevo, distorcendo ainda mais os conceitos de espaço e de tempo, já de si tão elásticos neste Alentejo profundo.

Passeio pela História

Partamos então à descoberta, rua afora, em direção ao castelo, situado no ponto mais alto da vila. Edificado no início do século XIV durante o reinado de D. Dinis, apresenta planta quadrangular reforçada por quatro torreões cilíndricos, preservando uma integridade formal pouco comum no Alentejo. A intervenção manuelina, responsável pelo portão principal em arco multilobado, reforçou a monumentalidade do conjunto, em cujo interior se pode apreciar um dos mais notáveis templos manuelinos da região: a Igreja de Nossa Senhora da Anunciação, que funciona como uma síntese entre a exuberância decorativa desse período e a tradicional austeridade da arquitetura alentejana. Os portais rendilhados, a cobertura em abóbada estrelada e os painéis de azulejo seiscentistas testemunham a importância simbólica do espaço, que continua a acolher cerimónias religiosas e romarias locais. As ruas estreitas que envolvem o castelo conduzem a pequenas praças, com casas caiadas de branco encimadas pelas tradicionais chaminés. Antigos lagares, armazéns e cisternas permanecem integrados no tecido urbano, recordando o passado agrícola que sempre marcou a economia local e cuja importância se mantém até hoje.

Tradição No restaurante Moagem, Pedro Dias junta típicos sabores alentejanos e cozinha contemporânea

A um par de quilómetros do centro, o Pincarinho de São Vicente constitui um dos pontos de observação mais interessantes da zona. Chega-se lá por um trilho logo à saída da vila, já na estrada que liga a Vila Nova da Baronia. Após cruzado o portão de ferro, o caminho atravessa, encosta acima, um campo de sobreiros e olivais até se chegar ao topo, onde se destacam as ruínas da antiga Ermida de São Vicente, no cimo da qual foi construído um miradouro, acessível por umas escadas de metal. Lá de cima, a vista é panorâmica, estendendo-se até à serra de Portel e às planícies que antecedem o grande lago de Alqueva. E em dias de maior nitidez, o horizonte prolonga-se ainda mais e sem interrupções visuais significativas, evidenciando ao detalhe a singular escala, tão grandiosa quanto tranquila, deste território.

No sentido oposto, a cerca de dois quilómetros, num terreiro plano e portanto perfeitamente alcançável também a caminhar, fica o imponente Santuário de Nossa Senhora de Aires, importante centro de peregrinação desde o século XVIII. O edifício, em estilo barroco, apresenta uma fachada de grande sobriedade, em tudo contrastante com o interior, que surpreende pela dimensão da nave e pelo conjunto de altares laterais em talha dourada. Igualmente impressionante é a contígua Casa dos Milagres, onde pode ser apreciada uma coleção notável de ex-votos, desde pinturas centenárias e fotos antigas e modernas a vestidos de noiva, tranças de cabelo, partes de corpo em cera e até garrafões de azeite, num misto de arte popular e devoção que funciona também como um valioso quadro histórico e sociológico da região ao longo dos tempos.

Associados a este espaço estão ainda dois dos mais emblemáticos eventos da região: a feira franca de Nossa Senhora D’Aires, realizada no último fim de semana de setembro, instituída pelo marquês de Pombal em 1754, e a Romaria a Cavalo, feita entre a Moita e Viana do Alentejo, através da antiga canada real, que se realiza sempre no último fim de semana de abril.

O que fazer à volta

A partir de Viana, o roteiro mais imediato conduz a Alcáçovas, vila para sempre ligada ao tratado de 1479, que definiu as áreas de influência entre Portugal e Castela. Foi assinado no Paço dos Henriques, um espaço recentemente recuperado, que agora acolhe também um centro interpretativo sobre o acordo e sobre a tradição chocalheira local, reconhecida como Património Cultural Imaterial pela UNESCO. O edifício tornou-se então um local central da História ibérica, por ter sido aí que foi lavrado o testamento de D. João II, consagrando D. Manuel I como seu sucessor, bem como os contratos nupciais do infante Fernando, duque de Viseu, e da infanta Beatriz de Portugal (pais de D. Manuel I), e de D. João II de Castela com a infanta Isabel de Portugal (pais da rainha Isabel, a Católica).

No sentido oposto, a cerca de 15 quilómetros de Viana e já no distrito de Beja, a vila de Alvito é outro complemento imprescindível a qualquer roteiro na região. O castelo, transformado em pousada na década 90, domina o núcleo histórico e conserva elementos góticos e manuelinos, permanecendo como referência visual para quem atravessa a vila. Outros locais de visita obrigatória são a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção, conhecida pelo portal manuelino e pelos retábulos setecentistas, e a Ermida de São Sebastião, que alberga um notável conjunto de frescos do século XVI.

Invulgar O castelo fica no ponto mais alto da vila. Edificado no início do século XIV, durante o reinado de D. Dinis, apresenta planta quadrangular reforçada por quatro torreões cilíndricos, preservando uma integridade formal pouco comumno Alentejo

Entre Viana, Alcáçovas e Alvito desenha-se assim um percurso que permite compreender diferentes camadas da História alentejana, desde a medievalidade militar à religiosidade barroca, passando pela arquitetura senhorial renascentista. As distâncias curtas facilitam as visitas em ritmo tranquilo, observando pelo caminho os olivais, o montado, as pequenas barragens e os montes isolados que continuam a marcar a paisagem agrária da região desde há muitos séculos.

Na estreita relação que mantém com a memória, este pedaço de Alentejo afirma-se como um destino discreto mas essencial, para conhecer em maior pormenor uma região onde o tempo parece correr mais devagar e a paisagem permanece como referência constante. 

Alentejo à mesa

A proposta de renovar preservando a memória da região prolonga-se também à mesa, no recém-inaugurado restaurante Moagem, que pretende afirmar-se como lugar de encontro entre os mais típicos sabores alentejanos e a cozinha contemporânea. A carta, criada pelo chefe Pedro Dias, natural do Porto mas neste momento “alentejano por opção”, assenta em ingredientes locais e sazonais, trabalhados com muita precisão, com a tradição a servir de base a pratos que respeitam a origem dos produtos, mas também refinam texturas e equilibram sabores. Entre as opções, destacam-se, por exemplo, a cabeça de xara com arroz cremoso de coentros e laranja ou a carpa com capuchinhas e amêndoa. O espaço divide-se em três áreas complementares: o refeitório interior, de linhas simples e industriais; o pátio, perfeito para as tardes quentes alentejanas; e o bar com lounge em torno de uma lareira central. Depois há ainda a cozinha, onde é servido o menu de degustação, o verdadeiro ás de trunfo deste restaurante. A cozinha aberta e a proximidade ao fogo (os pratos são feitos em fogo de chão numa chaminé com sete metros de altura) reforçam o elemento cénico e o carácter participativo da experiência. “Este menu muda diariamente e acompanha os ciclos da terra”, explica à VISÃO Se7e o chefe, que se mudou para o Alentejo para abraçar este projeto. “Aqui ganhei um tempo que nunca tive quando vivia na cidade”, diz com humor. O jantar começou assim com o habitual couvert, composto por pão alentejano, azeitonas, azeite e um patê de bolota com queijo de cabra, seguindo-se uma entrada com uma base de coscorão coberta com uma tomatada e um tártaro de gamba do mar curada com manjericão. Chegou depois a sopa, neste caso um caldo de cação, finalizado com um vinagre de mel, produzido por um apicultor da região, a explodir de sabor e a fazer lembrar as tradicionais sopas de cação alentejanas, mas numa versão muito mais leve e elegante.

Nesta noite, o prato principal era umas costelas de borrego, apenas temperadas com banha, pimentão, alho e ervas, que ficaram a cozinhar no fogo “desde a uma da tarde”, acompanhadas por um arroz de miúdos feito no forno. E para concluir, duas sobremesas, um brownie de bolota e um queijo de ovelha, como manda a boa tradição alentejana, neste caso acompanhado por puré de pera. “A cozinha alentejana pode ser muito pobre na sua origem, mas é muito rica em sabores e é isso que aqui pretendemos valorizar”, sublinha Pedro Dias.

Seg, qui-sáb 18h30-22h, dom 12h30-16h30 > Menu de degustação €60/pax sem bebidas

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O primeiro-ministro aumentou este sábado os objetivos salariais para o país, falando agora em 1.600 euros de salário mínimo e 3.000 euros de médio, um dia após mencionar valores inferiores.

“Nós não queremos crescer 2% ao ano. Queremos crescer 3%, 3,5%, 4%. Nós queremos que o salário mínimo não chegue aos 1.100 [euros]. Esse é o objetivo que temos para esta legislatura, mas nós queremos mais. Que chegue aos 1.500 ou aos 1.600”, disse este sábado no encerramento do X Congresso Nacional dos Autarcas Social-Democratas (ASD), no Porto.

O primeiro-ministro, que na sexta-feira tinha sugerido aproveitar a oportunidade da possível mudança das leis laborais para elevar o salário mínimo para os 1.500 euros e o médio para 2.000 ou 2.500, disse este sábado não querer “que o salário médio chegue aos 1.600 ou 1.700”, mas sim que “chegue aos 2.500, 2.800 ou 3.000 euros”.

Também na sexta-feira à noite, o secretário-geral do PS, José Luís Carneiro, acusou o primeiro-ministro de estar a “lançar uma cenoura” aos trabalhadores ao falar no aumento do salário mínimo para 1.500 euros, numa tentativa de esvaziar o conteúdo da greve geral.

Quer à entrada e à saída do Auditório Nobre do Instituto Superior de Engenharia do Porto (ISEP), onde decorreu o congresso dos autarcas social-democratas, Luís Montenegro não quis prestar declarações aos jornalistas.

“Nós queremos, efetivamente, criar a riqueza que possa combater a pobreza. Nós queremos um país que pense e execute um projeto de desenvolvimento que possa ser duradouro, que possa ser consistente, que possa ser suficientemente robusto para, cada vez mais, ser exemplar, como já é, hoje, à escala europeia”, frisou no seu discurso.

“São os mesmos que duvidaram que o ano passado que nós atingíamos as nossas metas orçamentais e económicas. Superámo-las. São os mesmos que este ano tornaram a duvidar e nós vamos tornar a superar”, assegurou.

O primeiro-ministro antecipou também que “daqui a um ano” as suas palavras “vão fazer ainda mais sentido”, tal como daqui a quatro anos, no final da legislatura e dos mandatos autárquicos, que terminam ambos em setembro de 2029.

Nas últimas semanas, vários meios de comunicação divulgaram dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) mostrando que uma em cada seis pessoas no mundo enfrenta a infertilidade em algum momento da vida. Essa prevalência – cerca de 17,5% da população adulta – confirma algo que observo diariamente na prática clínica: a infertilidade é muito mais frequente do que muitos imaginam.

E é fundamental dizer: a infertilidade está muito mais próxima do nosso círculo social do que parece. Atinge amigas, colegas, familiares – mas permanece oculta porque o sofrimento emocional associado é tão profundo que muitas pessoas não se sentem confortáveis para partilhar. No entanto, deveriam sentir-se seguras para falar. A partilha cria empatia, acolhimento e validação; além disso, saber que outras mulheres vivem o mesmo, alivia o peso psicológico que tantas carregam em silêncio.

A literatura científica demonstra claramente que o impacto emocional da infertilidade é comparável ao de doenças crónicas graves, estando associado a um maior risco de ansiedade, depressão e isolamento (Greil et al., Hum Reprod, 2011; Pasch & Sullivan, Fertil Steril, 2017). Nenhuma mulher deveria enfrentar isso sozinha. Por isso, reforço a importância de conversar com um médico, seja o médico de família, ginecologista ou especialista em reprodução, sobre o desejo de ser mãe. Quanto mais cedo for feita uma avaliação, mais cedo se identifica o problema e mais curto tende a ser o caminho para o sucesso.

Infertilidade: uma realidade de ambos os lados

Outro ponto essencial, raramente discutido, é que a infertilidade não é exclusivamente feminina. Mais de metade dos casos envolve fator masculino, isolado ou combinado (Agarwal et al., Reprod Biol Endocrinol, 2021). Os homens devem ser avaliados com o mesmo rigor. Quando não são investigados, perpetua-se um erro grave: o foco recai apenas sobre a mulher, que frequentemente é injustamente responsabilizada, o que agrava ainda mais o seu estado psicológico.

A infertilidade é, portanto, um assunto do casal – quando falamos de casais heterossexuais – mas é também uma condição que afeta mulheres solteiras e casais de mulheres, que podem igualmente enfrentar desafios no processo de procriação medicamente assistida.

Estamos a agir demasiado tarde

Existe ainda uma falta preocupante de informação dirigida às mulheres jovens. Deveria fazer parte da educação em saúde explicar que a possibilidade de criopreservar ovócitos entre os 25 e os 30 anos é uma decisão biologicamente estratégica. A insuficiência ovárica prematura, mais frequente do que se imagina, tem levado muitas mulheres jovens a depender de doação de ovócitos. Para muitas, este é um choque emocional avassalador que poderia ter sido prevenido com aconselhamento reprodutivo adequado anos antes.

É importante que as mulheres compreendam que a fertilidade não acompanha a maturidade emocional. Os ovócitos envelhecem connosco e não rejuvenescem. Esta é uma das conversas mais difíceis que um especialista pode ter com uma paciente que descobre, tardiamente, que precisará de recorrer a uma dadora.

O papel dos pais: uma mudança necessária

Os pais de raparigas têm um papel fundamental nesta mudança. Tal como se investe numa educação escolar ou universitária, é importante promover a informação e consciencialização sobre a fertilidade e opções reprodutivas. Neste contexto, a criopreservação de ovócitos pode ser apresentada como um possível “seguro reprodutivo”, algo que esperamos nunca ter de acionar, mas que, se algum dia for preciso, pode mudar destinos.

Infertilidade não escolhe classe social

A infertilidade afeta pessoas de todos os estratos sociais. Contudo, o acesso a tratamento continua desigual, e muitos acabam por abandonar o processo devido a limitações financeiras. É urgente reconhecer a infertilidade como um problema de saúde pública, garantindo acesso equitativo, financiamento adequado e ações eficazes de combate ao estigma.

Com oito anos de experiência em reprodução humana, baseio a minha prática em quatro pilares essenciais para maximizar as hipóteses de sucesso, sobretudo em casais que só podem financiar um único ciclo no setor privado:


1. Diagnóstico precoce
2. Avaliação da reserva ovárica
3. Avaliação integral do fator masculino
4. Planeamento individualizado do tratamento


Quando estes pilares são respeitados, o prognóstico melhora significativamente e reduz-se a taxa de abandono.

Portugal deve acompanhar o avanço internacional no PGT-A

É também importante refletir sobre a necessidade de Portugal acompanhar países como Espanha, EUA e Brasil, onde a realização de PGT-A (teste genético pré-implantação para aneuploidias) é permitida no setor privado, sem restrições de idade, em qualquer tipo de tratamento e utilizando ovócitos próprios ou de dadora.

É certo que clínicas que lidam com muitos casos complexos enfrentam realidades que talvez não reflitam a média nacional, mas que são reais, urgentes e merecem resposta.

Não seria justo que a legislação portuguesa protegesse a mulher submetida a processos de reprodução medicamente assistida emocionalmente exigentes – muitas vezes após recorrer a dois ou três dadores sem sucesso – permitindo o acesso a PGT-A? A experiência clínica mostra que muitas falhas repetidas poderiam ser evitadas caso fosse permitido identificar embriões aneuplóides antes da transferência.

É importante sublinhar que o recurso responsável ao PGT-A não é eugenia: não seleciona características, não escolhe o sexo do bebé; limita-se a identificar embriões aneuplóides, associados a um risco elevado de falha de implantação, aborto espontâneo ou desenvolvimento de fetos com anomalias graves.

Falar é poder! A mensagem final é simples e urgente: Conversem. Partilhem. Informem-se sobre a vossa fertilidade antes de existir um problema. Hoje pode não existir desejo de maternidade, mas o futuro muda – e os ovócitos envelhecem.

A infertilidade não é falha. Não é culpa. Não é vergonha. É uma condição médica que afeta milhões e que deve ser abordada com empatia, ciência e políticas públicas responsáveis, para que quem deseje ser mãe ou pai tenha uma oportunidade justa de o conseguir.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.