“Estas litografias são a única obra que deixarei assinada pela minha mão”, ecoa a voz tranquila. O ficheiro áudio com que JR responde às perguntas da VISÃO reflete o perfil do artista: um papa-léguas que trabalhou com milhares de pessoas nos cantos menos art friendly do planeta; uma celebridade que colaborou com celebridades como a realizadora Agnès Varda ou o ator Robert De Niro (no documentário The Past Goes Fast sobre o pai do ator, artista plástico); um artista universalista reconhecível pelas colagens fotográficas gigantes que cumprem a rua como “a maior galeria do mundo”… e alguém que ainda cultiva o anonimato através de óculos escuros e chapéu estiloso.

A pergunta tinha sido: afinal, que valor tinham para ele estas litografias agora mostradas na Galeria Underdogs se o público o reconhece é pela arte da rua? “O meu trabalho é sobretudo de natureza efémera, e estas litografias, assim como os originais, são o único testemunho do meu trabalho assinado pela minha mão. Não existe mais nada. Portanto, elas têm um enorme impacto e valor”, declara o artista no escuro da ferramenta digital. Anos antes, afirmara também à VISÃO que as litografias e as fotografias funcionavam como financiamento do seu trabalho, que queria liberto de marcas e mecenas.
Mundo a preto e branco
“Este processo litográfico tem imensa longevidade, é o mesmo usado por Picasso e Matisse, e foi feito no mesmo atelier de artesãos que esses grandes artistas usavam. É uma técnica com custos elevados, mas com resultados incríveis, que usam a luz e a pedra calcária”, acrescenta, orgulhoso.
A Galeria Underdogs acolhe, nesta primeira exposição de JR em Lisboa, 36 litografias (e dois trabalhos originais, um realizado em Paris, outro em Filadélfia). São os últimos exemplares que o artista minerou no arquivo de edições, limitadas a 180 ou 250 exemplares (disponíveis para pré-venda no site da galeria, até 28 de março). Aqui, cada litografia tem um QR code para ouvir o comentário áudio do artista. Como o da obra Empreinte, Chauvet, France (2023): “Fiz da minha mão uma grande escultura, que instalámos na abertura da cave Chauvet nas montanhas. Esta ideia de handprint veio do desejo de deixar uma marca na sociedade.”

JR: Through My Window é uma minirretrospetiva: observam-se as obras de megaprestidigitação que são JR au Louvre et le Secret de la Grande Pyramide (2019), com a pirâmide de vidro de I. M. Pei “escavada” no meio da praça; ou Retour à la Caverne – Acte I, 7 Septembre 2023, 06h52, Palais Garnier, France (2023), com a fachada “esventrada” da Ópera de Paris; ou ainda Giants, Rising Up, Hong Kong, China (2023), o salto acrobático do gigante sobre o skyline da metrópole…
Mas também estão os olhos expressivos de Women Are Heroes (2008), projeto realizado nas favelas do Rio de Janeiro. Há uns anos, o artista respondera à VISÃO sobre como pesa a questão moral de fazer arte à custa da tragédia alheia: “Não sou um mercenário. O meu trabalho fala sobre as pessoas, são elas que me interessam, o seu quotidiano. E elas veem que é uma grande forma de partilhar a sua história com o mundo.”
Não sou um mercenário. O meu trabalho fala sobre as pessoas, são elas que me interessam, o seu quotidiano
JR
Prestidigitador
Jean-René, nascido em 1983, filho de uma tunisina, começou a fotografar amigos “do gueto” com uma máquina fotográfica encontrada no metro de Paris, em 1999, e a colar os retratos nos bairros trendy da Paris burguesa.
Hoje, JR é uma máquina com fundação própria, a Can Art Change the World?, dedicada a projetos como a Casa Amarela no Morro da Providência, no Rio de Janeiro; a École Kourtrajmé (uma escola gratuita de cinema e artes nos subúrbios de Paris); o Refettorio Paris (uma cozinha social de chefes e artistas para reduzir o desperdício de alimentos); o Global Prison Art Program (que usa a arte como forma de reabilitação na população prisional).
E, é claro, o Projeto Inside Out, iniciado com o milhão de dólares ganho na sua premiada TED Talk de 2011: os imensos murais fotográficos somam mais de 572 089 retratos, distribuídos por 153 países e territórios, resultantes de 2 877 ações comunitárias.

Ativismo universal
Fizeram a diferença? “Sim, continuo em contacto com essas comunidades, e vejo as mudanças. Inaugurei há dez dias uma exposição em Londres com um projeto recente sobre crianças refugiadas ou deslocadas, e pude ver o impacto e as mudanças [operadas] no mundo graças a esses trabalhos [Les Enfants d’Ouranos (Crianças de Ouranos) e Déplacé-e-s (Deslocados), com imagens captadas na Ucrânia, no Ruanda e na Colômbia]. E fiz um projeto na prisão de Tehachapi [uma instituição de máxima segurança na Califórnia onde fotografou 28 prisioneiros e ouviu as suas histórias], que me deu uma verdadeira esperança no poder da arte e naquilo que esta consegue alcançar.”

O projeto vem agora a Lisboa: a carrinha estará estacionada no exterior da Galeria Underdogs no dia da inauguração, nesta sexta, 28, para os primeiros 250 candidatos a retratados, para um mural a instalar em lugar por decidir – e a darem um testemunho áudio. “Inside Out transformou-se num projeto fora do meu controlo: são as pessoas das comunidades que fazem viver o projeto. E a minha equipa ajuda-as a ganhar empoderamento. E tenho a certeza de que Lisboa é um lugar fantástico para atingir esse fim.”
JR: Through My Window > Galeria Underdogs > R. Fernando Palha, Armazém 56, Lisboa > 28 mar-19 abr, ter-sáb 14h-19h > grátis