1. Tudo o Que Imaginamos Como Luz, de Payal Kapadia
A Índia continua a ser o país que mais filmes produz no mundo, com uma média anual de mais de 1400, grande parte graças aos sucessos de Bollywood. Ao mesmo tempo, cresce um cinema indiano independente, na descendência de Satyajit Ray, que não nos deixa indiferentes. É nesse contexto que surge esta pérola, chamada Tudo o que Imaginamos como Luz, a segunda longa-metragem da jovem realizadora Payal Kapadia, um dos melhores filmes indianos que a Europa viu na última década.
Tudo o que Imaginamos como Luz é, em primeiro lugar, a sinfonia de uma cidade. É Bombaim que se celebra, nas suas cores e movimentos, observada em travellings, na leitura musical de Topshe: a banda sonora é um dos pontos altos de um filme que não tem pontos baixos. Uma cidade que nos impele, por onde somos levados através das cores, da energia, do seu devir. A cidade de todas as ilusões, como alguém a descreve.
Definida a cidade, entramos então nas personagens. Duas mulheres, ambas trabalham num hospital e partilham casa. A mais velha vive longe do marido que emigrou para a Alemanha e enfrenta com preceito a sua solidão. A mais nova vive um amor difícil, se não impossível, com um rapaz de outra religião.
O filme é altamente poético. Mas também concreto. Aqui conta-se uma história de amor com obstáculos do tamanho de um país inteiro (ou de uma cidade). O peso social de uma Índia conservadora é brutal e devorador, mesmo numa cidade tão moderna e festiva quanto Bombaim. De Payal Kapadia, com Kani Kusruti, Divya Prabha, Chhaya Kadam, Hridhu Haroon > 118 min
2. Folhas Caídas, de Aki Kaurismäki
Dois finlandeses entram num bar… Uma anedota poderia começar assim, mas ninguém saberia melhor continuá-la do que Aki Kaurismäki. O seu humor fino faz da própria realidade uma caricatura.
Aki Kaurismäki faz um filme na Finlândia insólita, mostrando um mundo desumanizado, onde ainda há espaço para as relações. Mas o próprio afeto é algo que nasce frio. As personagens têm um estar robotizado, inexpressivo, como se todas fossem clowns ao estilo de Buster Keaton. Os diálogos são hilariantes na sua inexpressividade, construindo um certo estilo de comédia. Os cenários e o guarda-roupa são estranhamente coloridos, em contraste com um mundo cinzento e deprimente que se vai entranhando. E há uma apatia reinante.
Em Folhas Caídas encontramos uma Finlândia pobre, miserável nos bens e nos costumes, mas feita de homens de coração frio, socialmente inviáveis. E no meio desse gelo, em que o álcool é o melhor remendo para aquecer as almas, consegue-se inventar uma história de amor. De Aki Kaurismäki, com Alma Pöysti, Jussi Vatanen, Janne Hyytiäinen, Nuppu Koivu > 81 min
3. O Meu Bolo Favorito, de Maryam Moghaddam e Behtash Sanaeeha
As grandes histórias de amor medem-se pela dimensão dos obstáculos. No caso de Romeu e Julieta, o clássico de Shakespeare, o obstáculo era o ódio visceral entre duas famílias. Em O Meu Bolo Favorito, da dupla iraniana Maryam Moghaddam e Behtash Sanaeeha, o obstáculo é um país inteiro. No Irão, o amor pode ser confundido com um inimigo de Estado, segundo os preceitos mais zelosos das brigadas morais e daqueles que as suportam.
O Meu Bolo Favorito começa por ser um filme de mulheres. Da condição feminina daquelas que ainda viveram antes da revolução islâmica e que mantêm viva a memória de um tempo de liberdade de costumes. Passados 50 anos, o conflito não só se mantém aberto como é resgatado pela geração mais nova.
Na segunda parte, o filme transforma-se numa inesperada e improvável história de amor, enriquecida com todos os pormenores de delicadeza. Mahin, numa idade em que já tem pouco a perder, revela-se uma personagem forte e determinada. Vive com Faramarz uma espécie de Antes de Amanhecer (Richard Linklater, 1995) aplicada à realidade dos idosos iranianos deste início de século. É devastadoramente belo e cruel. De Maryam Moghaddam e Behtash Sanaeeha, com Lily Farhadpour, Esmail Mehrabi > 97 min
4. Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo, de Radu Jude
Radu Jude é um dos mais fascinantes e insubordinados realizadores europeus contemporâneos, pela maneira como subverte as convenções e se sente livre para explorar formas e formatos no seu cinema, ao ponto de, ao longo dos últimos anos, a sua filmografia derivar entre longas e curtas-metragens e entre ficção e documentário.
Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo gira em volta da personagem de Angela, uma produtora de cinema que viaja de carro pela cidade para recolher depoimentos para um filme promocional encomendado por uma grande fábrica. Tal como no seu filme anterior (Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental), o que vemos aqui é uma tensão constante, nervos à flor da pele e, ao mesmo tempo, sobrevive aquele sentido de humor que caracteriza o novo cinema romeno da primeira e da segunda vagas e, muito especialmente, as ficções de Radu Jude.
O filme é um acutilante retrato contemporâneo, em que o realizador não se inibe de fazer cenas longas, contrastando com momentos de grande intensidade. Não atinge a surpresa e a consistência de Má Sorte no Sexo, mas continua a ser uma ideia refrescante de cinema. De Radu Jude, com Ilinca Manolache, Ovidiu Pîrsan e Nina Hoss > 163 min
5. A Flor de Buriti, de João Salaviza e Renée Nader Messora
O percurso de João Salaviza no cinema tem, claramente, duas fases distintas. A primeira corresponde às curtas e à primeira longa, Montanha, com retratos da Grande Lisboa, revelando um engajamento sociopolítico, que lhe valeram uma Palma de Ouro em Cannes (Arena) e um Urso de Ouro em Berlim (Rafa); a segunda é fruto do seu encontro com Renée Nader Messora e com os craós, povo indígena da Amazónia brasileira.
O primeiro fôlego da nova fase foi Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos e, agora, surge A Flor do Buriti. Não é uma sequela, mas uma sequência lógica. A linguagem mantém-se nos territórios de fronteira entre ficção e documentário, com uma participação ativa da comunidade na própria conceção do resultado final. É um filme de não atores.
Se em Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos já havia um subtexto político, na divulgação e defesa de outro estilo de vida, em A Flor do Buriti essa dimensão é reforçada, devido, em parte, ao contexto de opressão com que os craós lidaram durante a presidência de Bolsonaro, quando as instituições, que supostamente deveriam proteger os indígenas, foram entregues aos seus maiores inimigos.
A construção narrativa é rica na forma livre como retrata e conta as histórias, os rituais e os mitos indígenas – e esteticamente é deslumbrante, pelo olhar dos realizadores e pela opção corajosa de filmar em película, o que permite uma fotografia com textura e lugar para todos os tons de verde. De João Salaviza, Renée Nader Messora, com Francisco Hyjno Kraho, Ilda Patpro Kraho, Luzia Cruwakwyj Kraho > 123 min
6. Grand Tour, de Miguel Gomes
Em 2015, As Mil e Uma Noites, talvez o mais ousado filme de Miguel Gomes, entrou em Cannes pela ‘porta pequena’. O comité de seleção alegou que o filme era demasiado comprido (na verdade, divide-se em três parte e equivale a três longas-metragens), e exclui-o do concurso principal, selecionando-o apenas para uma das secções paralelas, a Quinzena dos Realizadores. Produtores e realizador não disfarçaram a desilusão, apesar de o filme ter ganho dois importantes prémios no certame. Em Grand Tour, o festival fez uma espécie de reparo histórico ao selecionar o filme para a secção principal. E o júri, presidido por Wim Wenders, fez-lhe justiça, ao distingui-lo com o prémio para a melhor realização.
Miguel Gomes desenvolveu a ideia a partir do livro The Gentleman in the Parlour: a Record of a Journey from Rangoon to Haiphong (1930), de Somerset Maugham, um diário de viagens, com descrições sobre cidades e paisagens. Assim nasceu a história de Grand Tour, situada no início do século XX, e na qual Edward (Gonçalo Waddington), funcionário do Império Britânico, anda há sete anos a fugir da sua noiva, Molly (Crista Alfaiate), escapulindo-se por sete países da Ásia, da antiga Birmânia à China.
Para esta ficção, o realizador filmou a preto-e-branco uma espécie de arquivo contemporâneo, cruzando a ficção com imagens documentais de cada um dos sítios por onde passa. O filme é falado em português e narrado em diferentes línguas asiáticas. De Miguel Gomes, com Gonçalo Waddington, Crista Alfaiate, Jorge Andrade, Cláudio da Silva > 129 min
7. Histórias de Bondade, de Yorgos Lanthimos
Histórias de Bondade é, ou quer ser, um triplo murro do estômago, que poderá deixar alguns agoniados, mas não deixará ninguém indiferente. Quando acaba a primeira história (a melhor do tríptico), ficamos absortos, a perguntarmo-nos: e agora? O que mais nos pode acontecer?
Em comparação com Pobres Criaturas, estas três histórias de bondade têm a ideia de se substituir a Deus: a omnipotência não está ao alcance dos homens, mas é perfeitamente acessível a um realizador engenhoso. Yorgos Lanthimos desenvolve em todas as histórias variantes da síndrome de Estocolmo. E em todas elas há uma ideia de manipulação elevada a limites tortuosos, levando a uma sobrevivência e dependência da vítima em relação ao agressor. Neste contexto, a primeira história ganha em elegância por o conseguir fazer sem recorrer ao sobrenatural.
As três histórias conjugam humor negro com puro terror, tendo todos os pormenores de argumento brilhantemente desconcertante, só possível num realizador que não se incomoda de esticar os limites. De Yorgos Lanthimos, com Emma Stone, Jesse Plemons, Willem Dafoe, Margaret Qualley, Hong Chau > 164 min
8. Clandestina, de Maria Mire
Tem como força motriz um impressionante livro de Margarida Tengarrinha, que descreve a forma como ela e o seu companheiro, o escultor José Dias Coelho (que seria assassinado pela Pide), ambos artistas, passaram à clandestinidade e se especializaram na falsificação de documentos. O texto por si só é forte e contundente. Mas Maria Mire vai mais além, conseguindo transformar tudo isto num objeto cinematográfico fascinante e esteticamente belo, através da criação de um dispositivo audacioso.
Clandestina está longe de um documentário clássico e nos antípodas de um documentário televisivo. Aliás, é um documentário que se serve de atores e de objetos e por isso distante da ideia formal de documentário. O que Maria Mire faz é preencher o texto com imagens. Só que as imagens escolhidas, que passam, por exemplo, por uma história da tecnologia, dos mídia, não são diretamente ilustrativas, mas que ganham carga simbólica. Há assim uma experiência visual paralela e complementar do que se ouve, tornando o filme deslumbrante e nada óbvio, fazendo subtis ligações ao tempo presente. Documentário > 82 min
9. O Mal Não Está Aqui, de Ryûsuke Hamaguchi
No pré-genérico, olhamos na vertical, de baixo para cima, para a folhagem das árvores da floresta e a sua oscilação natural. O realizador quer deixar claro, logo desde o início, que a verdadeira protagonista do filme é a própria Natureza.
O Mal Não Está Aqui, sobretudo na primeira parte, é construído com uma candura poética, uma lentidão contemplativa, que se torna deslumbrante. É um filme de baixo ritmo, em que parece que nada acontece, a não ser o vento a passar nas árvores, a neve a cobrir o solo, a água a correr na fonte. Quase a meio da longa surge o grande episódio destabilizador. Uma empresa de Tóquio apresenta um plano para construir um campo de glamping na floresta e marca uma reunião com a comunidade. Gera-se o conflito maior entre o progresso e a Natureza, entre o natural e o artificial, entre o campo e a cidade. A empresa de glamping é um retrato extremado e impiedoso do mundo negocial de Tóquio, em que os lucros se colocam à frente de todos os outros princípios.
O Mal Não Está Aqui fez um percurso notável por festivais, recebendo vários prémios em Veneza, e funciona, sobretudo, como uma enorme parábola ecológica. Tem um fundo zen, com a arte de recentrar as nossas prioridades na essência das coisas. Tão importante quanto belo e devastador. De Ryûsuke Hamaguchi, com Hitoshi Omika, Ryo Nishikawa, Ryuji Kosaka, Ayaka Shibutani > 106 min
10. Challengers, de Luca Guadagnino
O ténis é o mais mediático dos desportos individuais (também se pode jogar a pares) e, nos últimos anos, tem chegado às salas de cinema com objetos interessantes, como o extraordinário Borg vs McEnroe, de Janus Metz Pedersen, ou King Richard, de Reinaldo Marcus Green, sobre as irmãs Williams e o seu pai.
Em Challengers, o italiano Luca Guadagnino faz algo diferente, ao desenhar uma obra ficcional de raiz, não indo buscar nenhum desportista em concreto, mas tendo o ténis como pano de fundo. O filme conta a história de um triângulo amoroso em permanente luta por um dos vértices, nos limites da toxicidade e da perversidade moral e ética. No centro, a deslumbrante Zendaya, a atriz que aqui faz a diferença, com uma beleza não estereotipada, que crivelmente causa fascínio.
O guião é criado numa estrutura arriscada, cheia de analepses e prolepses, com o tempo a andar para a frente e para trás, mas que acaba por resultar bem, em parte graças a um trabalho minucioso e delicado de caracterização. Ganhe quem ganhar, Challengers é um grande filme de um grande realizador que já nos tinha dado obras maiores como Eu Sou o Amor (2009) e Chama-me pelo Teu Nome (2017). De Luca Guadagnino, com Zendaya, Mike Faist, Josh O’Connor, Darnell Appling > 121 min