Com uma ceguinha muito boazinha que tem visões, um cavalo chamado Testículo, cerejas com sabor a marisco e fornecedores de cervejas aos Cruzados, a longa-metragem Pôr do Sol: O Mistério do Colar de São Cajó são quase duas horas de pura galhofa, dos mais refinados disparates.
É preciso encontrar o homem com o coração mais puro de toda a Ibéria para ser o guardador do colar mais poderoso do mundo. Nas mãos dos Ourives de Cister, o colar do Nosso Senhor do Coisinho é disputado por vilões e nobres ancestrais.
Sancho, pessoa que nem se consegue enervar, embora não sendo homem de usar acessórios, sabe que, enquanto o colar mais conhecido de Santarém estiver na família Bourbon de Linhaça, nenhuma maldição se abaterá sobre o clã mais disfuncional da ficção ribatejana, quiçá portuguesa.
Spin-off da série Pôr do Sol, que faz uma sátira às novelas, com duas temporadas exibidas na RTP1, o filme começa no passado, há 3 500 anos, o tempo que o colar de São Cajó está nas mãos da família Bourbon de Linhaça.
“Só fazia sentido ir às origens das famílias. O interessante é ver como chegaram àquele ponto. Íamos inventar mais cavalos que andam para trás?”, diz Henrique Dias, argumentista. “Além da narrativa, a linguagem da câmara e a realização também se adaptaram ao filme que queríamos fazer”, acrescenta, à mesa do restaurante Varina da Madragoa, cenário de Pôr do Sol, onde, antes da estreia, a VISÃO Se7e conversou com os mentores do projeto transformado em fenómeno de culto logo na estreia, em agosto de 2021, e com a produtora da Coyote Vadio, Andreia Esteves, o travão pragmático às ideias delirantes do trio.
“Na primeira temporada, a série foi novela pura e dura, com a câmara a fazer plano geral/fechado/fechado; na segunda temporada, foi um bocadinho mais armado ao pingarelho, com cenas de exteriores de novelas e de algumas séries com pouco dinheiro. O filme é mais o nosso território, com planos diferentes e tudo mais vivo”, descreve Manuel Pureza, o realizador. “O cinema nem aguenta aquelas palhaçadas que fizemos nas duas temporadas. Todo o exagero é agora de maior contenção, numa direção de realização muito mais calma”, reforça Henrique. “Só assim se valorizam as cenas épicas. Se fossem histriónicas, perdia-se o espanto: ‘Uau, um banquete medieval.’”, brinca Manuel.
Aos pormenores de época, com pajens músicos de excelência (os primórdios da banda Jesus Quisto – ver caixa), junta-se uma banda sonora original, assinada por Artur Guimarães, que gravou belas orquestrações tocadas por um quarteto de cordas. “Queríamos uma versão muito bê bê bê do John Williams, bê de barato”, explica Manuel Pureza. “Arrancar o filme com cenas de um filme épico era um risco gigantesco”, argumenta. Por isso, o realizador reviu em barda filmes de Mel Brooks. Já para Henrique Dias, o final tem semelhanças com o género de Steven Spielberg, “algo muito emotivo”.
Ainda assim, cabem no filme Pôr do Sol cenas de espalhafatoso product placement (produtos publicitados na cena), personagens a fazer referências à série, outras que falam para a câmara, fixando o olhar no espectador (o chamado “quebrar a quarta parede”).
Rui Melo, ator que interpreta o vil Simão, é o último a chegar à mesa do restaurante Varina da Madragoa. Na série, vimo-lo a partir copos de whisky vezes sem conta; portanto, essa tornou-se a imagem de marca do protagonista, e não há quem não lhe pergunte pelo adereço. “Quando as frases passam a ser deixas das pessoas, incluindo no discurso político de vários quadrantes, entrando assim para a cultura popular, está o fenómeno instalado. Foi muito inesperado”, assume Rui Melo.
Na última Comic Con, feira dedicada à cultura pop, havia miúdas disfarçadas de Filipa (a gémea má), e, no Halloween, realizador e ator receberam imagens de festas temáticas do Pôr do Sol. “A cultura pop é isso, é o Rui Melo ter a sua cara tatuada na coxa de alguém”, revela o realizador, a quem também já pediram um abraço no meio da rua.
Como se não bastasse, no Google Maps, o Monte dos Duques, onde decorreram as gravações, está identificado como Quinta Bourbon de Linhaça. À venda encontram-se azulejos a dizer “odeio ser pobrezinha”, entre muitas outras frases, e polos da Comissão Nacional de Proteção de Agrobetos.
Para os três autores, o conteúdo mais procurado de sempre da RTP Play, streaming da estação pública, com 2 593 000 pageviews na segunda temporada, é um projeto dirigido a uma audiência urbana e transversal a várias gerações, mesmo se o público mais velho não souber o que é uma VPN e os mais novos não conhecerem a série Miami Vice (1984-1989).
POPULAR, NÃO POPULARUCHO
Sem qualquer intuito pedagógico de querer ser uma referência, Manuel Pureza notou que, depois de Pôr do Sol, as telenovelas mudaram os seus argumentos para a comédia. Mas porque é, afinal, tão apetecível gozar com as telenovelas? “Porque é profundamente ridículo”, atira logo Henrique Dias.
“O humor funciona por identificação, e há muito mais pessoas a conhecer o mundo das novelas do que outros mundos, como o da moda, do futebol, dos super-heróis, dos concursos, da religião, da política.”
Nenhum dos clichés das novelas satirizadas foi inventado pelos três criadores. Uma família rica numa herdade; as gémeas separadas à nascença que, afinal, são trigémeas; o criado amante da patroa; os pequenos-almoços à mesa, com bolos e sumos de fruta; entrar numa sala e perguntar “quem está aí?”; haver pessoas atrás de portas, duplas a falarem olhando para a frente, pensamentos profundos ditos perto de uma janela; entrar em casa e preparar um copo de whisky; e uma canção orelhuda no genérico (em Pôr do Sol, composta e cantada por Toy).
No meio das produções televisivas, já toda a gente dizia: “Temos de fazer uma coisa a gozar com as novelas.” Mesmo em Portugal, a ideia não é original. Em 1980, no Eu Show Nico, programa de humor de Nicolau Breyner, foi feita a novela Moita Carrasco e, n’O Tal Canal, de Herman José, em 1983, O Diário de Marilú.
Pôr do Sol foi também um fenómeno entre os artistas. Apesar de o elenco ter sido escolhido a dedo, sem qualquer casting prévio, “toda a gente quis entrar no Pôr do Sol para fazer a purga das novelas que fez”, conta Manuel Pureza, com uma década de realização de novelas no currículo.
“Alguns atores que agora são muito reconhecidos foram durante muito tempo ostracizados, por serem ‘revisteiros’ e fazerem teatro popular, como José Raposo, Luís Aleluia, Cristina Oliveira, Carla Andrino, Tó Melo, Noémia Costa. Nós fomos buscá-los porque sabíamos que esses eram os verdadeiros heróis, muitas vezes relegados para um segundo plano muito injusto”, acrescenta.
Este é o típico projeto humorístico em que, como explica Rui Melo, “a comédia só pode ser comédia para quem vê e só pode provocar gargalhadas em quem vê, e esse equilíbrio é muito difícil. O que só dificulta o trabalho da realização e da representação”.
“Nenhum de nós se leva muito a sério, mas levamos muito a sério aquilo que fazemos. Acho que essa é a grande diferença entre este projeto e outros de humor e de audiovisual”, reforça Henrique Dias.
A verdade é que nenhum dos autores estava à espera desta repercussão. “Mas também nenhum de nós tinha tido a oportunidade de fazer nada parecido e tão a sério”, resume Manuel Pureza. “Nunca encontrei um espaço tão seguro para trabalhar e, ao mesmo tempo, tão arriscado.”
Depois de um elenco tão aplaudido, com Gabriela Barros a receber, em 2022, o Globo de Ouro de Melhor Atriz, pela interpretação das trigémeas (Salomé, a ceguinha com visões, Matilde, com a sua tese de mestrado sobre betos da Mesopotâmia, e Filipa, vilã e diretora da revista Blaze, que detesta mulheres mais altas do que ela), nas palavras do realizador, o filme tinha de ter a mesma grupeta de atores. “Não era justo que assim não fosse. Como realizador, nunca vi um elenco tão nervoso para acertar na zona. É uma zona muito específica, não é a mais porque não é bonecada, nem pode ser a menos.” Ainda assim, há algumas entradas novas, como Diogo Infante e José Raposo, pesos-pesados que “encaixam que nem uma luva e dão uma substância ainda maior à história dos Bourbon de Linhaça”.
Tiveram quatro meses para escrever o argumento do filme, mais três a quatro semanas de gravações na primavera, mas nem por isso mais dinheiro para uma longa de duas horas. “Os filmes portugueses que acontecem são mesmo milagres. É uma questão de escala. Mesmo fazer televisão é um sufoco”, desabafa Manuel Pureza.
Com os 36 episódios da série disponíveis nos catálogos da RTP Play, da Netflix (só a primeira temporada) e na Prime Video, depois do grande ecrã, o filme será exibido na RTP1 no início de 2024, seguindo para uma plataforma de streaming. Será que estas pessoas vão continuar a trabalhar juntas? “Temos outras ideias, queremos fazer outras coisas”, afirma Rui Melo. Ainda bem, porque em equipa que ganha não se mexe.
Jesus Quisto, a banda que ganhou vida própria
Esta banda de punk-rock existe mesmo? Uma dúvida legítima de várias pessoas, exceto das milhares que enchem os espetáculos – verdadeiras performances com texto, marcações e encenação –, em que até são atirados soutiens para o palco.
Os Jesus Quisto nascem para a série Pôr do Sol como se de uma personagem se tratasse, mas a sua popularidade aumentou à boleia de canções simples num inglês macarrónico, com letra de Henrique Dias e música de Rui Melo, ator e músico.
Depois do lançamento de dois EP (Hits My Nice e Typical Sounds of Nice), as personagens Diogo (Cristóvão Campos), Beta (Mafalda Marafusta), Jimmy (André Pardal), Vera (Madalena Almeida) e Lourenço (Diogo Amaral) saltaram da ficção para os palcos de teatros, coliseus de Lisboa e do Porto, festival NOS Alive e Festival da Canção. Além disso, cantaram o tema oficial da RTP de apoio à Seleção Nacional de futebol, no Mundial de 2022, Portugals (Let’s Win the Victories), que valeu uma menção no jornal britânico The Guardian, e animaram um arraial lisboeta. No Spotify, estão 14 canções disponíveis para ouvir.
Pôr do Sol – O Mistério do Colar de São Cajó > de Manuel Pureza, com Diogo Amaral, Diogo Infante, Gabriela Barros, José Raposo, Rui Melo, Sofia Sá da Bandeira, Marco Delgado, Manuel Cavaco > 112 minutos