Do realismo social britânico a filmes de época, da comédia ao drama, do thriller às séries televisivas. Stephen Frears, 81 anos, já fez um pouco de tudo. Neste século, a sua carreira ficou inevitavelmente marcada por A Rainha (2006), que valeu um Oscar à atriz Helen Mirren. O seu percurso é longo e rico, dividindo-se sempre entre cinema e televisão.
Nascido em Leicester, realizou a sua primeira longa-metragem, Passos Silenciosos, em 1971. Depois, passou década e meia dedicado à televisão, com séries e telefilmes, até voltar ao cinema, em grande estilo, a partir de meados de 1980, com títulos marcantes como A Minha Querida Lavandaria (1985), Ligações Perigosas (1988), Anatomia do Golpe (1990), Herói Acidental (1992), Terra Perdida (1998), Alta Fidelidade (2000), Estranhos de Passagem (2002), Tamara Drewe (2010), Filomena (2013) e Victoria & Abdul (2017).
Em O Rei Perdido, baseia-se na história de um dos mais mediáticos achados arqueológicos do Reino Unido, nas últimas décadas: as ossadas do rei Ricardo III de Inglaterra, do século XV, retratado por Shakespeare como um terrível vilão, corcunda e cego pelo poder. Os seus restos mortais foram descobertos por baixo de um parque de estacionamento em Leicester, graças à determinação de uma cidadã comum, Philippa Langley, com a ajuda da excêntrica Richard III Society, cujo objetivo é demonstrar que o rei não era assim tão mau quanto parecia. À VISÃO, Frears fala sobre o filme, a monarquia e o lugar de Inglaterra no mundo.
É sempre um risco lidar com “história contemporânea” e retratar personagens reais. Como correu?
Acho que cometi um erro com este filme, mas não vou dizer qual foi. Um tipo safa-se sempre. Também me safei com A Rainha, em que mexia em coisas muito delicadas, como a morte da princesa Diana, e houve algum alarido enquanto estava a preparar o filme. Mas, depois de terminar, não se ouviu uma palavra contra. Pelo contrário, houve muitos elogios.
E neste filme?
Bem, os académicos ficaram furiosos. Mas a verdade é que são uns idiotas que ainda não cresceram. Disse-lhes mesmo: “Pensei que tinham sido estúpidos quando isto aconteceu; agora vejo que não mudaram.” A Philippa foi muito mal tratada. Basta consultar os emails trocados para perceber que a tese do filme está totalmente correta; estavam a marginalizá-la e a ser paternalistas com ela. Mas foi ela quem encontrou o rei.
O filme expõe um conflito entre a racionalidade da Ciência e um lado mais intuitivo… Como se posiciona neste caso?
Sou sempre pela Ciência. Mas, aqui, havia este “R” pintado no chão do parque de estacionamento, que, na verdade, queria dizer “reservado”, e ela achou que era um sinal de Ricardo. Quando se fez a escavação, verificou-se que as ossadas do rei estavam enterradas a menos de um metro dali. Um palpite? Sorte? Não faço a mínima ideia. Só sei que foi o que aconteceu.
O que o levou a pegar nesta história?
Sou de Leicester e achei esta história particularmente absurda… Há o corpo de um rei encontrado num parque de estacionamento, e os envolvidos nesta demanda são pessoas vulgares. Era exatamente sobre isto que Shakespeare escrevia, não necessariamente em Ricardo III, mas nas suas peças sobre reis e rainhas. Ao mesmo tempo, passa-se algo perfeitamente banal e algo maior, transcendente.
Que acabou por mover mundos e fundos…
Recentemente, descobri o envolvimento da própria rainha em todo o processo. Primeiro, a Philippa escreveu à rainha a dizer o que estava a fazer. Esta respondeu formalmente, desejando-lhe sorte. Quando encontraram o corpo, a Philippa insistiu que tudo teria de ser tratado segundo o protocolo real. Encontrei-me recentemente com o homem que representava a família real no processo e apercebi-me de que tudo aquilo, o funeral, as alterações nos arquivos régios, só foi possível com a intervenção direta da rainha. Se soubesse disso antes, poderia ter trazido a Helen [Mirren] de volta para este filme.
Papel fundamental teve a Richard III Society.
Para mim, é um bando de lunáticos, mas, quando uns malucos acertam assim numa coisa, tenho de dar o braço a torcer e dizer que, afinal, talvez não sejam tão malucos quanto isso. Não sei se Ricardo III foi um bom ou um mau rei, nem sequer estou muito interessado no assunto. O que me interessa é contar esta história incrível.
Esta descoberta tem algum impacto especial na sociedade britânica?
Não. Tudo em volta da monarquia é muito complicado. Quando andei na escola, havia um mapa em que um quarto do mundo estava pintado de vermelho, porque nos pertencia. E ensinaram-me todas aquelas histórias de reis e rainhas. Só quando cresci, descobri que o mundo era mais complexo e interessante do que isso. Tivemos uma rainha desde 1952; não consegues escapar à monarquia quando és inglês.
Nota-se algum ceticismo …
Em todo o seu reinado, a rainha só teve uma semana infeliz, em que foi obrigada a mudar de ideias. Depois, por algum motivo, transformou-se numa mulher extraordinária. Nada fez a vida inteira. Disponibilizou-se apenas para que as pessoas projetassem coisas nela. Não tinha qualquer talento; negou-se a si própria, e as pessoas gostaram disso. Tornou-se melhor quando envelheceu. Antes de morrer, pareceu-me claro que ela se queria ver livre de Boris Johnson. Sabia que ele era um desastre.
Depois da morte de Isabel II, a monarquia inglesa ficou fragilizada?
Não vejo como a monarquia poderá chegar ao fim. Os ingleses são profundamente conservadores e muito estúpidos. A quantidade de primeiros-ministros que houve nos últimos tempos é incrível. O maior erro foi deixar a União Europeia. Pior ainda, deixar a União Europeia da forma como o fizemos.
E agora, qual é o rei que se segue?
Nunca quis fazer filmes sobre reis e rainhas. Simplesmente aconteceu. O meu percurso tem sido uma sequência de surpresas. Consigo ver tudo o que já fiz no primeiro filme, Passos Silenciosos. A forma, o humor… Estou nos meus oitentas, e a fazer uma série em seis episódios para a HBO sobre um ditador da Europa de Leste. É fantástico. E espero fazer um filme no próximo ano sobre Billy Wilder. Tive muita sorte. Tenho uma vida muito mais interessante do que esperava.
“O Rei Perdido”: Uma história insólita
O Rei Perdido é um filme profundamente inglês. Stephen Frears leu nos jornais a incrível história da descoberta do corpo de Ricardo III num parque de estacionamento na sua Leicester natal, e não resistiu. O filme tem, por um lado, aquele sentido de humor característico dos britânicos, que acompanha Frears em parte da sua carreira; por outro lado, ao mesmo tempo que conta um episódio insólito, de forma por vezes arrevesada, é um filme feito para repor justiça: as ossadas de Ricardo III foram encontradas graças a uma obsessão insana de uma cidadã comum, Philippa Langley, mas os investigadores fizeram de tudo para lhe tirar os louros.
O Rei Perdido > De Stephen Frears, com Sally Hawkins, Steve Coogan e Harry Lloyd > 108 min