Começaram como “aprendizes de feiticeiro”. Aos poucos, descobriram como um tecido tingido ganha diferentes nuances, uma luz afasta o olhar do público das movimentações do cenário, uma palavra amplificada parece sussurrada ao ouvido dos espectadores. E as fantasiosas visões de autores, encenadores, figurinistas e cenógrafos ganharam vida no palco do Teatro Nacional São João (TNSJ). O deslumbramento, assegura a equipa, é renovado a cada espetáculo, sobretudo nas produções da casa. “Aprendemos e continuamos a aprender muito. Acreditamos sempre que é possível concretizar as ideias dos criativos, porque o palco, embora não tenha os efeitos especiais do cinema, também tem a sua magia”, sublinha Elisabete Leão, coordenadora do departamento de guarda-roupa e de adereços.
Multiplicam-se os exemplos de evolução, hierárquica e não só, dentro do TNSJ, a começar pelo presidente do conselho de administração Pedro Sobrado que ingressou, em 2000, como assessor de imprensa, tendo também passado pelo departamento de edições. “Dá-se o caso extraordinário de, no momento presente, os dirigentes máximos da casa no plano administrativo e artístico serem elementos desta prole imensa gerada por este teatro nacional”, conta Sobrado. Como decisivos para este crescimento, enumera “a peculiar estabilidade institucional e orgânica que tem distinguido o teatro, mesmo em tempos críticos ou de mudanças de governo”. E acrescenta: “Além da autoexigência técnica e artística que preside e enforma a nossa ação. É um princípio transversal a toda a organização, da bilheteira à porta dos artistas, do subpalco à teia.” Criou-se uma academia informal que capacitou todos os que por ali passaram. “A progressão é viável, clara e contínua… Desde 2003, não sinto qualquer tipo de estagnação; pelo contrário, aprendi um pouco de cada área”, conta Emanuel Pina, o diretor de palco. Um engenheiro cuja paixão pelo teatro foi crescendo, “também pela diversidade de espetáculos da casa” e pela oportunidade de trabalhar com grandes figuras, como a do encenador lituano Eimuntas Nekrosius. “Experiências gratificantes e inspiradoras”, resume.
A história deste monumento nacional é descrita como “errática”. O edifício ocupou o lugar do primitivo Real Teatro do Porto, construído em 1798, o primeiro da cidade destinado exclusivamente à apresentação de espetáculos e destruído por um incêndio, em 1908. Constituiu-se, então, uma sociedade por quotas com o intuito de se reunir verbas para o nascimento de uma nova sala de espetáculos. As obras, iniciadas em 1912 e concluídas em 1920, foram conduzidas pelo importante arquiteto portuense José Marques da Silva. A ele se deve, pela sua formação, a influência da arquitetura francesa em traços que ainda hoje se mantêm e encantam o público. “Quando as pessoas entram no foyer ficam logo impressionadas, há uma grandiosidade que não esmaga… Vê-se até pelos miúdos, ficam logo mais sossegados; há uma beleza que os acalma”, descreve Fernando Camecelha, responsável pela frente de casa.
Muitos visitantes ainda guardam memórias dos tempos em que o São João funcionou como cinema, depois de 1932, para fazer face ao decréscimo da produção teatral na cidade. Após um longo período de decadência, seguiu-se a aquisição pelo Estado, em 1992. Nos primeiros anos, o teatro foi dirigido por Eduardo Paz Barroso, acolhendo sobretudo produções alheias e espetáculos musicais. Em 1995, após obras de restauro conduzidas pelo arquiteto João Carreira, a respeitar o projeto original, o TNSJ reabre portas e Ricardo Pais é nomeado diretor artístico.
Ricardo Pais inventou um teatro nacional para o Porto, numa altura em que a cidade estava pronta para explodir culturalmente. “Com a entrada de Ricardo Pais, eleva-se a fasquia em termos de rigor e de exigência na produção dos espetáculos”, concorda Francisco Leal, que regressa ao TNSJ, em 1996, para dirigir o departamento de som. Segundo Pedro Sobrado, um assumido “ricardopaisiano”, “por vezes, mal temos consciência [da sua influência] e, no entanto, é estruturante e irradiante”. Os convites para trabalhar no teatro eram recebidos efusivamente. “Esta era a instituição cultural mais excitante do panorama cultural português. Ricardo Pais tinha uma energia criativa absolutamente extraordinária e uma inteligência contagiante”, recorda João Luís Pereira, do departamento de edições. Saiu em 2009 e Nuno Carinhas ocupou o cargo de diretor artístico, enfrentando um período de recessão económica, em que se tornou imperativo garantir a sobrevivência do tecido teatral da cidade, com coproduções.
A festa do centenário
A programação para o centenário, definida por Nuno Cardoso (nomeado diretor artístico em 2019), conta com seis produções próprias. No dia do aniversário, a 7 de março, regressa o espetáculo Turismo Infinito, uma das mais marcantes produções do TNSJ, agora com nova encenação de Ricardo Pais, a imergir pelas várias escritas de Fernando Pessoa. A 27 de março, sobe ao palco A Castro, de António Ferreira, o amor de Pedro e Inês numa versão cabo-verdiana assinada pelo diretor artístico, tal como acontece com A Varanda, de Jean Genet (com data a anunciar). No final do ano, é a vez da estreia de dois espetáculos criados por um conjunto de pessoas envolvidas nos clubes de teatro sub-18 e sub-88 (projetos do Centro Educativo, a funcionar desde setembro passado), a partir de textos de Shakespeare e com direção do próprio Nuno Cardoso e de Nuno M. Cardoso. “Esta comemoração não enferma de qualquer saudosismo. Temos saudades do futuro, apenas!”, sublinha Pedro Sobrado. Como eixo programático está a afirmação enquanto casa de criação teatral, com o progressivo recentramento na produção própria, sem deixar de ser um coprodutor de referência. Em fevereiro, será posto em prática um projeto antigo: a constituição de um “elenco quase residente”. Começarão com um pequeno núcleo de seis atores (grupo que esperam reforçar no futuro), rostos associados a produções do São João. Para Pedro Sobrado, esta “é uma medida da mais irrefutável racionalidade económica, porque um elenco contratado à temporada ou ao ano é altamente rentabilizado na circulação nacional e internacional dos nossos espetáculos e, inclusive, em projetos de coprodução, além de constituir um elemento-chave para o estabelecimento de uma política de repertório digna desse nome”.
A programação internacional, penalizada em anteriores temporadas, recuperará fulgor e atravessará todo o centenário como uma viagem. Haverá propostas muitos díspares que envolvem, esclarece Pedro Sobrado, “formas clássicas de encenação, estratégias performativas que exploram as possibilidades teletecnológicas, processos participativos que incluem o público na construção do espetáculo, teatro de raiz documental…”. Em fevereiro, chega MDLSX, da companhia italiana Motus, uma performance a solo de Silvia Calderoni, “intensa e desafiadora”, que remete para um set de DJ/VJ e cruza referências literárias e musicais. Uma mostra do que será o programa O Olhar de Ulisses, excursão sobre as formas do fazer teatral contemporâneo, à volta de temáticas como a viagem, as questões de género, as margens ou o problema das migrações.
Haverá ainda um programa editorial ambicioso, em que se destacam os Cadernos do Centenário, seis publicações a conferir lastro às comemorações. O primeiro, com o título provisório O Elogio do Espectador, será lançado a 7 de março e conta com cem depoimentos sobre cem espetáculos produzidos ou programados pelo TNSJ. Outra novidade será o lançamento da coleção Empilhadora, nome que resulta, explica João Luís Pereira, “de um falhado ato de gestão, do desvio de uma verba destinada a uma empilhadora… Uma pequena vitória do espírito sobre o império das máquinas”. Falhar Melhor: A Vida de Samuel Beckett, de James Knowlson, e Olhai a Neve a Cair: Impressões sobre Tchékhov, o ensaio biográfico de Roger Grenier, estão entre os volumes a publicar durante este ano.
A revisão do passado incluirá uma importante exposição de caráter museográfico sobre os 100 anos do São João, a inaugurar em setembro, “um projeto que tentará colmatar as graves falhas de memória histórica de que padece este Monumento Nacional”, explica Pedro Sobrado. Um edifício cuja história “favoreceu a pulverização de documentos e materiais”, acrescenta o presidente da administração, estando agora a ser reunidos documentos e testemunhos.
No final das comemorações, em março de 2021, avançarão novas obras de reabilitação, transversais ao edifício, a começar pela modernização da estrutura de palco. “Seria um exagero dizer que estamos a preparar o São João para mais um século, mas esta casa estará em muito boas condições para viver mais 25 anos de teatro nacional”, assegura Pedro Sobrado. E, quem sabe, mais 100 anos.
Um século de história
Renasceu das cinzas, foi cinema e, no final do século XX, assumiu-se como o teatro nacional do Porto
1920
Inauguração do Teatro de São João, implantado no mesmo local do Real Teatro do Porto (destruído por um incêndio, em 1908). O edifício é projetado pelo arquiteto José Marques da Silva
1932
Com a decadência da produção teatral, converte-se em sala de cinema e adota a designação de São João Cine
1992
O edifício é adquirido pelo Estado e inaugurado como Teatro Nacional São João (TNSJ)
1995
Após obras de restauro, assinadas pelo arquiteto João Carreira, o TNSJ reabre portas. Pouco depois, Ricardo Pais é nomeado diretor, cargo que ocupa até julho de 2000 e ao qual regressa de 2002 a 2009
João Luís Pereira, 51 anos, há 20 no São João , coordenador do departamento de edições
Instalado no Mosteiro São Bento da Vitória, o departamento de Edições assegura a produção de todos os materiais que documentam a programação do TNSJ. “Sendo o teatro uma arte efémera, estamos a contrariar essa efemeridade com a documentação de todos os projetos, com programas de sala, manuais de leitura, dossiers fotográficos… Há esta necessidade de o arquivar para memória futura e de promover olhares cruzados sobre os espetáculos.” Apostam ainda na edição de textos dramáticos (com a coleção TNSJ/Húmus, já com 31 volumes publicados) e não só, estando previsto para 2020 o lançamento da coleção Empilhadora, com títulos dedicados à estética teatral, ensaios, memórias e biografias.
A equipa da costura
Os responsáveis de guarda-roupa e adereços costumam dizer que trabalham para “a senhora do binóculo”: “Se vê um botão mal cosido, vai-se embora”
Os ensaios podem estar a decorrer há semanas, mas quando os atores enfrentam pela primeira vez as provas do guarda-roupa e usam os adereços, a transformação é imediata e influencia decisivamente a interpretação. O conforto não entra necessariamente na equação. “Já fizemos figurinos altamente desconfortáveis, cujas limitações ajudam à construção das personagens”, concordam todos os elementos da equipa, à roda de uma mesa de costura: Elisabete Leão (coordenadora), Nazaré Fernandes, Virgínia Pereira, Isabel Pereira, Guilherme Monteiro e Dora Pereira. “O ideal é que estejam prontos o mais cedo possível.” E não há facilitismos na confeção e nos acabamentos. “Não sabemos fazer mal. Costumamos dizer que trabalhamos para a senhora do binóculo: se vê um botão mal cosido ou umas pérolas fora do sítio, vai-se embora.” Sabem que precisam de jogar com o desenho de luz e de exagerar os efeitos para que se tornem visíveis na plateia. “A luz transforma os materiais, um pano-cru pode parecer riquíssimo e um veludo pode parecer um trapo no palco”, exemplificam. As experiências com os materiais são infindáveis, para chegar às cores, às texturas e aos efeitos desejados pelos figurinistas e cenógrafos. “Somos autossuficientes: se algo não existe no mercado (e mesmo quando existe), nós fazemo-lo.” Entre as dezenas de produções, a experiente equipa (entre os 19 e os 26 anos de casa) não consegue chegar a acordo sobre a mais desafiante. Recorda, entre muitos, os cenários cobertos de sal d’Os Gigantes da Montanha, os adereços infindáveis d’Os Últimos Dias da Humanidade, a loucura de UBUs ou os vestidos e capas opulentos d’O Mercador de Veneza. “A memória dos espetáculos tem sempre uma referência visual” e é por aí que o trabalho desta equipa ficará para a História.
Emanuel Pina, 49 anos, há 17 no São João, Direção de Palco
O teatro aconteceu por acaso na vida de Emanuel Pina – formado em Engenharia Eletrónica e de Telecomunicações–, mas transformou-se numa paixão. Atualmente, é o responsável pela coordenação das áreas técnicas, assegurando o encaixe de todas as peças de um espetáculo (luz, som, montagens, cenografia…) e o normal funcionamento da casa. “Depois da direção artística e da direção de produção terem feito a calendarização da programação, tenho de ver se esta é compatível com os nossos recursos técnicos e humanos e avaliar se é possível contratar fora”, explica Emanuel. Um trabalho de antecipação, para que, no tempo apertado da montagem dos espetáculos, nada falhe.
Fernando Camecelha, 57 anos, há 16 no São João, frente de casa
É uma das caras que o público associa ao TNSJ. No foyer, procura “garantir que o acolhimento das pessoas seja o mais simpático possível e que usufruam do espetáculo nas melhores condições”. Manter o cumprimento dos horários é a parte mais complicada do relacionamento com o público. “Não é casmurrice, as pessoas têm de perceber que, se fazem barulho ao entrar na sala, perturbam a relação entre a plateia e o espetáculo… Assim que se apagam as luzes, entra a magia – e nada a pode estragar.” Dos episódios caricatos, recorda uma noite em que o teatro foi rodeado pela polícia de intervenção, alertada por um senhor que, ao receber a mensagem de telemóvel de um amigo a dizer “já rolam cabeças e jorra sangue no S. João”, julgava ter ali ocorrido um atentado. Afinal, era apenas um espectador impressionado com a encenação de Macbeth. Porventura, mais uma das lendárias maldições da peça de Shakespeare.
Maria João Teixeira, 58 anos, há 19 no São João, Diretora de Produção
Está presente em todas as fases do teatro. Juntamente com o diretor artístico, faz o planeamento das atividades, com um ano de antecedência, desde datas a espetáculos, orçamentos e, a partir daí, assegura que há condições para o seu cumprimento, seja na parte técnica, seja na realização de novos contratos. “Há mil e uma coisas para tratar… Normalmente, vou para casa quando o segurança me diz que tem de fechar as portas. O cansaço desaparece quando vejo o público contente e a aplaudir”, diz. Ali, recorda tudo aquilo por que passaram, “como se o espetáculo tivesse várias camadas”. “Era bom que as pessoas pudessem perceber o trabalho que está por detrás”, remata.
Francisco Leal, 54 anos, há 29 no São João, Coordenador do Departamento de Som
Veio para o TNSJ em 1993, aquando da aquisição do edifício pelo Estado, e começou do zero a tratar da formação da equipa e da aquisição dos equipamentos. “Foi um desafio, porque tive uma grande liberdade nas opções técnicas”, recorda. Após um pequeno interregno, regressou a esta casa em 1996, já com Ricardo Pais na direção. Fazer a gestão da equipa e da tecnologia pelos três espaços do TNSJ ocupa grande parte do seu tempo. Mas também assina a sonoplastia e o desenho de som de algumas das produções. “Começo por me inteirar do universo do autor e, quando o tenho na cabeça, já consigo produzir em termos musicais”, conta.