Fala-se do Teatro Nacional São João (TNSJ) como um centro de formação. Tem 19 anos de casa, começou como assessor de imprensa e chegou a presidente do conselho de administração. E há ainda outros exemplos de evolução dentro desta casa. Quais os fatores que contribuem para isso?
Sim, tem razão, há muitos outros exemplos, do departamento editorial (de onde saí) às áreas do som e da iluminação, passando pela encenação, voz e elocução, figurinos… Dá-se o caso extraordinário de, no momento presente, os dirigentes máximos da casa no plano administrativo e artístico serem elementos dessa prole imensa gerada por este Teatro Nacional. Muitos já que nem sequer trabalham connosco e têm feito um percurso notável como técnicos e artistas nas mais variadas áreas. Acho que poderíamos inclusive falar de uma diáspora do São João! Diversos fatores – e não podemos sequer esquecer o contexto político e governativo em que o TNSJ emergiu na cidade do Porto e no País – concorreram para fazer do São João esta escola de formação. Eu ressaltaria dois: por um lado, a estabilidade institucional e orgânica que tem distinguido o TNSJ, mesmo em tempos críticos ou de mudanças de Governo; por outro, a autoexigência técnica e artística que preside e informa a nossa ação. É um princípio transversal a toda a organização, da bilheteira à porta dos artistas, do subpalco à teia. Este teatro convoca as pessoas para o seu crescimento. Evidentemente, a esse fenómeno não é também alheia a generosidade que caracterizou aqueles que nos antecederam à frente do São João e que desempenharam um papel genuinamente formativo.
Assume ter uma “gramática ricardopaisiana”. Em que é que isso se concretiza?
Quando falamos e escrevemos, não passamos em revista as normas da língua portuguesa, mas a verdade é que, sem termos plena consciência disso, a gramática subjaz e informa tudo o que dizemos. Algo análogo ocorre com a influência que o Ricardo Pais exerceu em muitos de nós no São João: por vezes, mal temos consciência dela e, no entanto, é estruturante e irradiante. Revela-se na cultura de exigência de que falei, no impulso de superação do amadorismo congénito de que o teatro nunca parece livrar-se completamente… Um teatro nacional deverá ser necessariamente o lugar onde somos postos no nosso melhor. Esta gramática diz também respeito à ideia nuclear de que um Teatro Nacional é, antes de mais, um palco, quer dizer, um projeto teatral, um projeto de exercício artístico, que exorbita o seu talento e dignifica os vários ofícios do teatro. Tem de ver também com o princípio de que a palavra deve constituir o eixo ético de toda a ação de um teatro como o São João. Isso manifesta-se, por exemplo, no nosso investimento editorial e documental…
Em que ponto está a criação de uma companhia de atores “quase” residente?
A última coisa que fizemos antes do Natal foi precisamente apurar alguns aspetos da minuta de contrato a celebrar com esses atores. Anunciaremos publicamente, em fevereiro, a reconstituição do nosso “elenco quase residente”. Começaremos com um pequeno núcleo de seis atores, constituído por rostos que associamos a produções do São João e por atores que têm integrado espetáculos do Nuno Cardoso [diretor artístico]. Apesar de o TNSJ ter sido reconduzido ao patamar de financiamento em que se encontrava nos anos que antecederam a famigerada “austeridade”, a nossa disponibilidade orçamental não nos permite ir mais longe. Alimentamos a legítima expetativa de vir a reforçar este grupo no futuro. É preciso que se diga que não se trata de uma ambição faraónica, pelo contrário: é uma medida da mais irrefutável racionalidade económica, porque um elenco contratado à temporada ou ao ano é altamente rentabilizado na circulação nacional e internacional dos nossos espetáculos e inclusive em projetos de coprodução, para além de constituir um elemento-chave para o estabelecimento de uma política de repertório digna desse nome. Somos como Hamlet: nunca somos tão felizes como quando usufruímos da companhia dos atores. Mas também é preciso que se diga: nunca somos tão produtivos nem tão rentáveis como quando dispomos de uma companhia de atores.
Durante o centenário, serão revisitados alguns espetáculos que marcaram o TNSJ?
Esta comemoração não enferma de qualquer saudosismo. Temos saudades do futuro, apenas! Talvez por isso a programação artística definida pelo Nuno Cardoso não recupere nem reelabore especialmente a matéria cénico-teatral do passado. Retomaremos, é certo, no dia 7 de março – o dia em que o São João completa 100 anos – Turismo Infinito, o espetáculo quintessencial de Ricardo Pais. É um espetáculo cuja gestação tive o privilégio de testemunhar de perto e a que assisti diversas vezes, mas que me é muito difícil de descrever. O próprio Ricardo Pais disse recentemente que Turismo excede-o e que é melhor do ele próprio. É um óvni, um objeto teatral difícil de categorizar… é invasivo e totalizante, no entanto, de um minimalismo a toda a prova. A revisão e a revisitação críticas do passado do São João passam por outras manobras que não estritamente teatrais. Refiro-me nomeadamente a uma coleção de livros designada “Cadernos do Centenário” e a uma importante exposição de caráter museográfico sobre os 100 anos do São João, um projeto que tentará colmatar as graves falhas de memória histórica de que padece este Monumento Nacional.
Quantas produções próprias haverá durante o centenário?
Ao todo, seis, um número impensável há escassos anos, mas que precisa de ser explicado. Duas destas produções correspondem à estreia de dois espetáculos que serão encenados pelo nosso diretor artístico, um dos quais – Castro, de António Ferreira – terá uma versão cabo-verdiana, naquela que será uma aventurosa experiência sobre o crioulo, cuja base lexical é portuguesa. Para além da remontagem do Turismo Infinito a 7 de março e da apresentação de A Morte de Danton no Teatro D. Maria II, o plano de produções próprias para 2020 envolve ainda, no final do ano, dois espetáculos criados com um conjunto de pessoas envolvidas nos clubes de teatro sub-18 e sub-88 que criámos em setembro e que se têm revelado uma das experiências mais entusiasmantes do nosso centro educativo.
Falou no reforço do acolhimento de espetáculos internacionais. Já se pode levantar o véu sobre as presenças durante o centenário?
Em vez de produzirmos mais um festival que se concentraria em três semanas do ano, optámos por uma programação internacional que atravessa todo o centenário como uma viagem, que, na verdade, começa já em janeiro com a apresentação de Western Society, um espetáculo dos Gob Squad que alguém descreveu como “uma Odisseia de trazer por casa”. Haverá um tempo para o Nuno Cardoso anunciar todo esse programa, mas posso adiantar que envolve formas clássicas de encenação, estratégias performativas que exploram as possibilidades teletecnológicas, processos participativos que incluem o público na construção do espetáculo, o teatro de raiz documental…
Quando avançará a reabilitação e a requalificação do TNSJ? O que está previsto fazer?
Haverá um tempo próprio para anunciar e detalhar todo esse programa, que, refira-se, será executado com fundos comunitários, através do programa operacional NORTE 2020. Evidentemente, seria impensável encerrarmos o São João para obras durante o ano em que se celebram os 100 anos do edifício. Essa intervenção – cujos projetos de execução já se encontram finalizados e aprovados – ocorrerá no final do centenário, em 2021. Posso adiantar que, embora o teatro não se encontre num flagrante estado de decrepitude, essa obra de reabilitação será transversal a todo o edifício e terá um caráter multiforme. Vai desde a modernização de toda a estrutura de palco – incluindo o próprio palco – até a intervenções muito relevantes em matéria de segurança contra incêndios e ao nível da eficiência energética, passando pela resolução de graves problemas de infiltração e pela reabilitação de elementos degradados, nomeadamente na sala de espetáculos. Este projeto envolve ainda uma outra coisa que é decisiva e que começa já em 2020: a substancial renovação do parque técnico do São João, ao nível da iluminação cénica, som, vídeo e direção de cena. Refiro-me a equipamentos que estão muito desatualizados e, em alguns casos, até obsoletos. Seria um exagero dizer que estamos a preparar o São João para mais um século, mas, no termo desta operação, esta casa estará em muito boas condições para viver mais 25 anos de teatro nacional.