“É uma exposição documental, mas também objetual com preocupações plásticas, informativa e historiográfica”, salienta o mentor da exposição Guilherme Blanc
Lucilia Monteiro
É a história da música feita no Porto, numa retrospetiva de cinco décadas, de 1960 a 2010, que envolve mentes inquietas, ligadas à música erudita e de contestação, ao rock, ao hip-hop e à eletrónica, e dá a conhecer a onda vanguardista e a liberdade sonora da cidade. Antes mesmo da revolução chegar. Em Musonautas, Visões & Avarias, patente na Galeria Municipal do Porto, até 18 de novembro, faz-se o mapa deste notável percurso sonoro através de documentos, objetos, episódios, histórias e muitos personagens. É à boleia de maestros, compositores e músicos como Álvaro Salazar, Cândido Lima, Filipe Pires, José Mário Branco, Jorge Lima Barreto, Manel Cruz, Pedro Abrunhosa, Rui Veloso, Sérgio Godinho e muitas bandas que seguimos viagem pela exposição, numa visita guiada por Paulo Vinhas, o curador.
Antes faça-se um aviso prévio. Este é um programa para duas horas, seja ele em forma de visita por conta própria ou guiada (aos sábados, há visitas guiadas gratuitas às 16h). Os mais apressados podem encurtar o tempo, claro, mas esta é uma retrospetiva de pormenores, cheia de nuances, onde cada objeto encerra uma história. Do primeiro elemento visível ao último disco exposto. “É uma exposição documental, mas também objetual com preocupações plásticas, informativa e historiográfica”, salienta o mentor de Musonautas, Visões & Avarias, Guilherme Blanc, adjunto na área da Cultura da Câmara do Porto, sublinhando que, pela primeira vez, se conta a história da cidade no âmbito da música, cuja importância não estava devidamente documentada, nem defendida.
Painel de Gerardo Burmester que serviu de cenário ao festival Porto Rock, realizado na Cruz Vermelha de Massarelos, em 1985
Lucília Monteiro
Depois do boom Rui Veloso
À entrada da Galeria, encontra-se um painel original de grande formato, do arquiteto Gerardo Burmester, usado no festival Porto Rock, realizado na Cruz Vermelha de Massarelos, em 1985. “Foi o cenário da primeira série de concertos na cidade, depois do boom Rui Veloso”, conta-nos Paulo Vinhas. Para o curador, que acompanha estas movimentações desde os anos 60, toda esta investigação permitiu ilustrar e dar a conhecer com mais pormenor esta narrativa portuense. Cada um pode escolher a forma como vê a exposição, mas há uma ordem cronológica estabelecida na parede e outra ligada à relevância de autores, organizados aqui em ilhas, além de um organigrama XXL, visível em toda a sala, que junta todas estas peças.
Qual garimpeiro de sons, Paulo Vinhas, que é também programador e editor, vai desfiando histórias da chegada de Jorge Peixinho ao Porto, na década de 60, de muitos visionários, em particular os eruditos; do programa de rádio Musonautas, de Jorge Lima Barreto, que arriscava dar a conhecer o mundo; passando pelo tema Avarias, do primeiro álbum dos GNR, Independança. A letra desta música liga de forma curiosa a erudita e o pop, criando uma fronteira estética que Paulo Vinhas entendeu ser quase o pêndulo desta exposição.
Nas diversas áreas, é visível a preocupação da equipa de investigadores de incluir quem não seguiu modelos
Lucília Monteiro
Sem fronteiras estéticas entre o rock e a erudita, esta é, diz o curador, uma exposição democrática e inclusiva, dedicada aos criadores, não ao intérprete, daí não se encontrarem ali os djs, o drum’n’bass, ou as festas. Nas diversas áreas, houve sempre a preocupação de incluir quem não replicou modelos e pensou em criar algo diferente. O primeiro registo é um disco de Fernando Lopes Graça que, embora não sendo do Porto, considerava esta como a sua cidade musical, um disco da Orfeu sobre a poesia de Eugénio de Andrade. Seguem-se os eruditos compositores, como Filipe Pires, Cândido Lima e Álvaro Salazar, aos quais foram atribuídas ilhas, onde podem ver-se objetos pessoais, pautas e fotografias.
Mais à frente, o curador fala da apresentação de O Gebo e a sombra, encenado por Ernesto de Sousa, com música de Jorge Peixinho, executada por Clotilde Rosa, com cenários de José Rodrigues e cartaz de Armando Alves. “Temos aqui a vanguarda. É absolutamente formidável, reunir toda a esta equipa”, continua Paulo Vinhas. Mas há muito mais. O primeiro artigo de jornal sobre a música eletrónica, escrito ainda na década de 60; as imagens de um concerto, já no final da década de 60, junto à Estação de S. Bento, onde se reuniu um mar de gente, ao estilo de manifestação rockeira; o primeiro disco de ouro português de 1981, que pertence aos TAXI, com vendas superiores a 30 mil cópias.
Aqui encontramos os Pop Five Music Incorporated, o primeiro fenómeno de rock, uma folha de sala e os instrumentos de um concerto para crianças, encenado por Jorge Peixinho, para o Teatro Pé de Vento, onde participou Pedro Abrunhosa; a génese da obra Ribeira Negra do mestre Júlio Resende, que surge de um convite da Oficina Musical, e o apoio monetário pedido por José Mário Branco ao público para a edição dos seus discos, noticiada nos jornais da época. “Foi talvez a primeira experiência de crowdfunding, muito antes de se tornar uma prática comum”, lembra-nos o programador.
Numa retrospetiva de cinco décadas, de 1960 a 2010, conta-se com documentos, fotografias e objetos, a história musical da cidade do Porto
Lucília Monteiro
Para ler, aprender e ouvir
E chegamos às “ilhas”, onde se poderá escutar a música dos muitos personagens desta exposição. É importante ler, não passar ao lado de textos, aos quais Paulo Vinhas e a equipa de investigadores tanto tempo dedicaram, para contextualizar objetos, documentos e fotografias. Há uma área dos Mind da Gap, o primeiro grupo a legitimar a língua portuguesa no hip-hop, uma outra dedicada a Manel Cruz que criou toda uma obra composta por peças marcantes, como a personagem da capa do álbum O Monstro Precisa de Amigos.
“Aqui temos os cantores de contestação, como o José Mário Branco e o Sérgio Godinho”, mostra-nos o curador. Além da pauta de Inquietação, está ali o famoso cartão da PIDE de José Mário Branco – e que bem vestido ele estava! -, e um single solidário com as vítimas da repressão no Brasil, que o juntou a Sophia de Mello Breyner. Ao lado, no chão, estende-se ao longo de 30 metros a partitura que o maestro e compositor Cândido Lima fez para a exposição de Vieira da Silva, em Serralves, no final da década de 80. “É a primeira vez que é mostrada”, realça o curador.
De José Mário Branco, um dos protagonistas da exposição, vemos vários objetos, como a fotografia tirada pela PIDE quando o compositor foi perseguido
Lucilia Monteiro
Na área da música erúdita, encontramos o fulgurante Álvaro Salazar, o esquecido Cândido Lima, cujo currículo não ostenta medalhas, nem condecorações, e Filipe Pires, o autor do álbum Canto Ecuménico. Além de partituras e discos originais, aqui se reúnem objetos pessoais, como as batutas e o cachimbo do Álvaro Salazar. A cidade do Porto, diz Paulo Vinhas, tinha “um ambiente de tertúlia muito intenso”, juntando pintores, arquitetos e músicos à mesa do café. É desta época, por exemplo, a capa do disco Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, de José Mário Branco, criada pela dupla José Rodrigues e Armando Alves, um álbum do Bando dos Gambozinos com capa de Manuela Bacelar, além de Coincidências, de Sérgio Godinho com desenhos de René Bertholo.
Montada em apenas nove dias, a exposição, que dará origem a um livro, revela-se um ponto de partida, uma espécie de estímulo para investigadores e curiosos. “A investigação desenvolvida ultrapassa muito o exposto”, portanto, garante Guilheme Blanc, será editado um livro, “para dar voz a alguns dos objetos”.
A Memória do Elefante, uma das publicações vanguardistas antes do 25 de Abril, está disponível para consulta
Lucilia Monteiro
Musonautas, Visões & Avarias 1960-2010 – 5 décadas de inquietação musical no Porto > Galeria Municipal do Porto > Jardins do Palácio de Cristal, R. D. Manuel II, Porto > T. 22 608 1063 > Até 18 nov, ter-sáb 10h-18h, dom 14h-18h