Este poderia ser um caso de memória dissociativa, distúrbio bipolar até. Obra de Jorge Pinheiro? Haverá quem recorde esses bispos pintados em traço realista e fundos densos: a versão vermelha a revelar rotunda figura eclesiástica de perfil, sentada-quase-deitada, cetro a descansar entre as pernas, mitra alta com o símbolo da Inquisição; a versão azul representando o homem do clero numa luz fria, com um enigmático pão aberto à sua mercê. Ou quem tenha contemplado criaturas aladas e crianças sob céus plúmbeos e mulheres de negro sentadas em interiores monocromáticos, ou decifrado o Charlot cinematográfico, bigodinho e chapéu de coco a espreitar nas pinturas, ou ainda identificado conflitos do século XX, por exemplo na pintura da rapariga de lenço na cabeça – que cita o célebre cartaz de propaganda russa feito por mãos construtivistas – a encimar um guerrilheiro com rosto tapado por um kufiyyah que pega numa criança ao colo. Mas há quem identifique sobretudo a produção abstrata, por vezes tridimensional, que Jorge Pinheiro foi alternando com a figuração: as obras geométricas, em círculos, quadrados ou triângulos coloridos, toda uma investigação espacial transportada também para fora das telas, arrumando-se nos cantos das paredes em ângulos impossíveis – uma visão que mantém a contemporaneidade do artista de 85 anos, prémio AICA 2001.
A ideia para esta exposição partiu de outro artista plástico, Pedro Cabrita Reis, admirador confesso de Jorge Pinheiro: o Museu de Serralves recebe cerca de 80 obras do artista, numa mostra com desenho de instalação concebido por Eduardo Souto Moura, continuando o programa dedicado à obra de artistas relevantes do século XX – como Jorge Pinheiro, que integrou, na década de 60, os Quatro Vintes, com Ângelo de Sousa, Armando Alves e José Rodrigues, todos alunos da Escola de Belas-Artes do Porto. Alternando entre os comentários à sociedade, a abstração geométrica, e a exploração das noções de ritmo e serialidade, associadas à música e ao número, mostram-se pinturas, desenhos, esculturas (incluindo uma obra inédita) – reencontros com um mestre, que será ainda objeto de uma exposição paralela de 90 desenhos na Fundação Carmona e Costa, em Lisboa.
Museu de Arte Contemporânea de Serralves > R. Dom João de Castro, 210, Porto > T. 22 615 6500 > 16 set-7 jan, seg-sex 10h-19h, sáb-dom 10h-20h > €10