O filme de Scorsese dava um tratado teológico. Regressando a um tempo em que a fé movia montanhas e havia quem preferisse morrer a pisar uma imagem sagrada, Scorsese aborda o radicalismo setecentista para falar do auge do desencontro de civilizações. Silêncio é uma obra profundamente espiritual, crente, que não subverte a doutrina cristã, mas que deixa todos os outros ângulos disponíveis. Tal como João Mário Grilo, em Os Olhos da Ásia, Scorsese parte do romance de Shûsaku Endô, que fala da presença dos padres jesuítas no Japão e, sobretudo, na violenta purga aos cristãos.
Os Padres Rodrigues e Garrpe partem clandestinamente rumo ao Japão, em busca do seu mentor, Ferreira, que, segundo alguns boatos, havia renunciado à sua fé. Uma missão quase impossível, dada a violenta perseguição feita aos cristãos naquele país. Em Silêncio, repete-se a história dos primeiros cristãos, num contexto exótico e inesperado. Uma comunidade que cresce secretamente, celebrando os seus rituais de forma rude e improvisada, sob a permanente ameaça dos soldados do inquisidor-mor. Alguns deles acabam crucificados, mas a sua fé é inabalável.
Contudo, o filme de Scorsese não é uma mera glorificação do martírio, ao estilo de Quo Vadis. O realizador consegue um importante revés através da personagem de Inoue, o inquisidor-mor, dotado de argúcia, retórica e pragmatismo. Apercebe-se que o martírio é a chave da expansão do cristianismo, pelo que só poderá ser erradicado caso os padres renunciem à sua própria fé. Abre-se assim espaço para um inesperado confronto de ideias, de princípios, em que se diluem as imagens de herói e de vilão. Scorsese constrói um filme espiritualmente intenso, de uma transcendência palpável, sobre os mistérios da fé.
Silêncio > de Martin Scorsese, com Andrew Garfield, Adam Driver, Liam Neeson, Issei Ogata, Yôsuke Kubozuka,Yoshi Oida > 161 min