
Uma coprodução do Teatro Experimental do Porto com o Teatro Municipal do Porto e o Teatro Nacional D. Maria II
José Caldeira
Uma Union Jack (a bandeira do Reino Unido) desconstruída funciona como cortina transparente entre a sala de jantar da família Rice e o restante palco. Enquanto o público entra para o auditório, a atriz Maria do Céu Ribeiro aspira a carpete, o músico Paulo Furtado (The Legendary Tiger Man) afina os instrumentos e um ou outro ator rodeia uma máquina de venda automática. Respeitando as didascálias de John Osborne sobre O Animador, o espetáculo do Teatro Experimental do Porto (TEP) manteve o palco praticamente despido, com pouco mais do que uma mobília dos anos 50 e os trabalhadores do teatro (a working class) em cena. Os mais vulneráveis, retratados numa alegoria que associa a decadência do music-hall e de uma família de artistas à falência de um país.
O motor dramático da peça é a ausência de Mick, o filho capturado pelas forças inimigas no Canal do Suez na crise de 1956 que ditou a humilhação militar e diplomática de Inglaterra. Os restantes Rice aguardam por notícias do soldado e as garrafas de gin amontoam-se na mesa. O avô Billy (António Júlio), uma antiga estrela do music-hall, para quem “a profissão está morta”, queixa-se das opções do filho Archie à neta Jean (Iris Cayatte), a idealista da família, a digerir o fim da relação com o noivo, após uma discussão sobre a sua presença numa manifestação contra o Governo. Frank (Manuel Nabais), o filho que mantém a linhagem artística e que foi preso durante uns meses por recusar-se a participar na guerra, e Phoebe (Maria do Céu Ribeiro), a mãe alcoólica que desejava que o marido seguisse uma vida mais respeitável e cómoda, compõem o restante quadro familiar.
A ação é intercalada pelos números artísticos de Archie Rice (uma interpretação inspirada de João Pedro Vaz), que se desdobra em piadas de mau gosto sobre a mulher, em “cantiguinhas da sua lavra” e em elogios ao Império Britânico. Uma personagem que nunca chega a despir, mantendo as graçolas, os esquemas (nesse dia comemora o 20.º aniversário a não pagar impostos) e os comentários inoportunos durante a reunião familiar, mesmo quando as notícias que chegam são dramáticas.
O TEP, explica Gonçalo Amorim, diretor artístico da companhia, pegou nesta peça, escrita em 1957 (quando o autor tinha apenas 27 anos), pelo simples facto de ser “o melhor texto de Osborne”. “Apesar de datado, o público consegue meter-se na máquina do tempo”, diz o encenador, que contou com a versão cénica de Rui Pina Coelho. “Queríamos manter a coisa simples e não avançar para uma reescrita.” Mas conseguem-se estabelecer paralelismos entre a Inglaterra do pós-guerra, em nostalgia por um tempo perdido, e a situação económica atual. Pontualmente, são introduzidas pequenas derrapagens temporais na peça para interpelar o agora, nomeadamente com a música de Paulo Furtado, que optou pela interpretação ao vivo. “Senti que era necessário criar uma espécie de panela de pressão sonora, muito forte e tensa, para apoiar a viagem emocional desta família”, refere o músico.
O tom corrosivo e desanimador não deixa grande espaço para a esperança, até porque, para Gonçalo Amorim, “a luz ao fundo do túnel é um comboio na nossa direção”, como diz o filósofo esloveno Slavoj Žižek. No entanto, frente a “um inimigo de uma grande violência, excessivamente militarizado, capaz de minar a opinião pública”, há que reconhecer a enorme vitalidade de algumas destas personagens, capazes de dizer “não” e de afrontar os poderes instituídos.
Teatro Municipal Campo Alegre > R. das Estrelas, Porto > T. 22 606 3000 > 26-29 nov, qui-sáb 21h30, dom 17h > €7,50
Teatro Nacional D. Maria II > Pç. D. Pedro IV, LIsboa > T. 21 325 0800 > 10-20 dez, qua 19h, qui-sáb 21h, dom 16h > €5 a €17

A sala de jantar da família Rice
José Caldeira