Junto ao Padrão dos Descobrimentos, 15 contentores alinhados e empilhados reproduzem a fotografia de Alfredo Cunha tirada em 1975 neste preciso local. Lá dentro não há pertences despachados à pressa, mas frases ditas por quem se viu obrigado, há 40 anos, a meter-se num avião e deixar Angola e Moçambique para trás, rumo a Lisboa. A instalação, do ateliê Silva Designers, serve de ponto de partida para a exposição Retornar – Traços de Memória, que ocupa a nova Galeria Municipal Avenida da India, na correnteza de armazéns ali a cerca de 800 metros. E que retrata, através de testemunhos, documentos oficiais, artigos de jornais, fotografias e objetos, esse “retorno” das ex-colónias portuguesas que começa em 1974, tem o seu auge em 1975 com uma ponte aérea a funcionar entre Luanda e Lisboa, e se estende até 1977.
Iniciativa da empresa municipal EGEAC, a exposição resulta de uma investigação da antropóloga Elsa Peralta sobre “a memória daqueles que viveram o fim do Império colonial, e dos seus descendentes, e a forma – saudosista, em negação, crítica, orgulhosa, traumática – como se recordavam desse tempo”, explica à VISÃO. “Foram dois anos e meio de entrevistas, de conversas que surgiam na rua ou em cafés, de contactos que se fizeram em grupos no Facebook, de uns que apresentavam outros”, diz Elsa Peralta, que é também comissária da exposição. É desses testemunhos, gravados em áudio, que se faz um dos núcleos da exposição, onde se ouvem as vozes de 12 rostos fotografados por Bruno Simões Castanheira. Não estão identificados, convidando a sentar e a escutar quem foi para África e voltou, quem lá nasceu e veio depois para Portugal, mas também quem nasceu cá a ouvir contar histórias de lá.
Adaptar o estudo à exposição “não foi fácil”, admite Elsa Peralta. Desde logo pela linguagem própria que um estudo académico tem. “Aí sabemos para quem estamos a falar, numa exposição falamos para um público mais vasto, com diferentes sensibilidades”. Depois, pela extensão das fontes que “obrigou a selecionar, por exemplo, as pessoas a retratar ou os materiais que se queriam mostrar”. Como as mais de 600 fotografias, cedidas ou de arquivos nacionais, que preenchem duas paredes da galeria, a lembrar um álbum gigante de família, com crianças a brincar, casamentos, batizados, almoços, paisagens ou idas à praia.
Mais do que fazer a história, o que se propõe em Retornar – Traços de Memória é “trazer pontos de vista diversos, até porque as pessoas dizem coisas muito diferentes, e convidar ao debate”, resume Elsa Peralta. “Sim, está lá a contextualização histórica”, diz. Que se faz através de documentos de arquivo sobre os movimentos migratórios de Portugal para Angola e Moçambique a partir de meados do século XIX; das notícias de jornais ou de um núcleo dedicado ao Instituto de Apoio ao Retorno dos Nacionais (IARN). “Mas este é um tema tabu, há um silenciamento desse momento que foi difícil, e só muito timidamente foi abordado – em livros, como O Retorno, de Dulce Maria Cardoso; no cinema, como o filme Tabu, de Miguel Gomes, ou na televisão, como a série E Depois do Adeus, que passou na RTP 1, só para citar alguns. Esta é a primeira vez, do ponto de vista institucional, que se cria uma oportunidade de discutir um tema que tem, em si, uma carga emocional e ideológica pesada”.
É desse convite ao debate, mas também da abertura a outras abordagens artísticas, que surge o programa completar que se estende ao longo dos quatro meses que dura a exposição. E que se faz de visitas comentadas – a primeira marcada para o próximo dia 21, às 17 horas, conduzida por António Pinto Ribeiro –, ou de conversas que há de levar, por exemplo, Adriano Moreira, Eduardo Lourenço e Nicolau Santos no dia 9 de dezembro ao Padrão dos Descobrimentos. É aqui que terá lugar a performance Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas, da atriz e encenadora Joana Craveiro, sobre o Estado Novo, a Revolução e o PREC (21 de novembro, 19h). Já o Teatro S. Luiz será palco, a partir de 14 de janeiro, do espetáculo Portugal Não é Um País Pequeno, de André Amálio, que se propõe a refletir sobre o fim da guerra colonial e a descolonização através, precisamente, de testemunhos de quem a viveu.
A partir da exposição, foi criado também um site – www.retornar-tracosdememoria.pt –, com informações sobre o programa, as imagens que compõem os arquivos documental e fotográfico e no qual se convida à participação de todos na construção dessa memória de África, 40 anos depois.
Retornar – Traços de Memória > Galeria Municipal Avenida da Índia > Av. da Índia, 170, Lisboa > até 29 fev, ter-sex 10h-13h, 14h-18h, sáb-dom 14h-18h. Grátis