Cartas da Guerra é a história de um amor brutalmente interrompido por uma guerra incompreensível. É a história de um médico que se descobre escritor nas Terras do Fim do Mundo. É a história de um homem que ganha consciência política entre as chagas dos seus camaradas. É um intenso e agonizante poema feito filme, sob o olhar de Ivo Ferreira.
O realizador adaptou a correspondência que António Lobo Antunes enviou à sua mulher Maria José enquanto serviu de médico alferes durante a Guerra Colonial, em Angola. As cartas transformaram-se em livro, em 2005, com o título D’Este Viver Aqui Neste Papel Descripto: Cartas da Guerra. E depois em filme, em 2016. Um filme que respeita admiravelmente as palavras do autor, servindo-se delas para criar a estrutura que o atravessa e sustenta e dá margem para a recriação cinematográfica do realizador, que entendeu bem a profundidade do seu sentido poético.
Assim, um conjunto de textos selecionados é lido em off por Maria José (Margarida Vila-Nova). Esses textos são “ilustrados” por imagens que dizem, complementam ou contradizem aquilo que está escrito nas cartas. Esse constante jogo entre o que se diz e o que se vê, feito de forma pouco óbvia, é a maior riqueza do filme: um notável e surpreendente trabalho que revela grande intuição cinematográfica.
Cartas da Guerra desdobra-se em camadas de leitura. A história de amor é descrita no contraste entre dois mundos: a realidade presente brutal e castradora, o passado e o futuro fantasiados e paradisíacos. Há ainda, claro, a dimensão política, que se torna evidente nas conversas com o capitão (Ernesto Melo Antunes), mas também no teor de algumas linhas escritas. E depois a clara partida para uma loucura moribunda, para o espaço difuso onde se perde a sobriedade, o desespero impera e foge a razão. Um caminho para o abismo um pouco ao estilo de Apocalipse Now.
Efetivamente, Cartas da Guerra é um filme de guerra. Mas nem por isso se desdobra em cenas de batalha ou altos atos de heroísmo. Desvenda o lado mais íntimo da batalha de cada homem consigo próprio e com o meio que o envolve, numa luta permanente pela sobrevivência física e psicológica. E através de um indivíduo iluminado (pelo seu olhar de escritor) se desvenda o drama de um batalhão, de uma geração, de um povo.
O filme foi rodado na província de Cuando Cubando, nas Terras do Fim do Mundo, em Angola. Uma produção muito complicada, com vários elementos da equipa a contraírem doenças e que só foi possível graças ao apoio da população local.
Cartas de Guerra > RTP 2 > 16 mar, sáb 00h05 > De Ivo M. Ferreira, com Miguel Nunes, Margarida Vila-Nova, Ricardo Pereira, David Caracol, Simão Cayatte, Cândido Ferreira > 105 min