NÃO-FICÇÃO
1. Lenços Pretos, Chapéu de Palha e Brincos de Ouro
Susana Moreira Marques
O que este livro não é: uma monografia, uma tese académica, um ensaio cheio de notas de rodapé, uma exibição de saber. O que este livro talvez seja: uma demanda, uma inquietação, um discurso amoroso, uma pergunta em busca de respostas. Em Lenços Pretos, Chapéu de Palha e Brincos de Ouro, Susana Moreira Marques refaz os passos de Maria Lamas, escritora e jornalista que, entre 1947 e 1949, percorreu o País para perceber como viviam as mulheres portuguesas. Foi um gesto ousado para a época e na fase da vida em que se encontrava, afastada da revista na qual trabalhava. As Mulheres do Meu País é um marco no jornalismo português e o mote para esta viagem que Susana Moreira Marques empreendeu, primeiro na colaboração do filme de Marta Pessoa e agora numa escrita ainda mais pessoal, no estilo único que lhe reconhecemos de Agora e na Hora da Nossa Morte e Quanto Tempo Tem um Dia. Viagem pelo País, sim, mas sobretudo pelo arquivo de Maria Lamas e seu empreendimento, pelos bastidores de um livro que se lê e observa até ao mais ínfimo pormenor. Viagem, também, sobre o que é ser mulher em Portugal, tanto no Estado Novo como agora, e o que é pertencer a uma genealogia de mulheres, a começar na avó da autora (que podia figurar na pesquisa de Maria Lamas) e a acabar na sua filha. Um livro para um futuro que não esqueça o passado. Companhia das Letras, 128 págs., €15,45
2. Uma Mulher com Cancro, um Psicólogo e uma Virgem Entram num Death Café
Lara Vaz Pato
Entra-se neste livro com o coração nas mãos, mas sai-se de alma lavada, mesmo sabendo que nos fala do que é, e continua a ser, uma experiência de vida dura, trágica, até revoltante. Lara Vaz Pato morreu aos 33 anos de um cancro galopante e incurável. Nascida em Coimbra, em 1988, perseguiu sempre intensamente os seus sonhos, mesmo quando se equivocou. Doutorou-se em Engenharia Biomédica, viveu na Bélgica e nos Países Baixos, iludiu-se com a ciência de dados e confrontou-se com a sua finitude. O que nos conta nestes textos que publicou no seu blogue, quase até à sua morte, em 2022, é a constante vontade de fazer e compreender, de aproveitar o tempo vivido. É isso que mais nos fascina e prende, do início ao fim, nesta prosa direta e profunda, sem lamentos nem maquilhagens. Uma história de família, de coragem e de aceitação. Um hino à vida. Quetzal, 232 págs., €17,70
3. Como um Marinheiro Eu Partirei
Nuno Costa Santos
Sempre ligado aos Açores, para onde regressou recentemente, Nuno Costa Santos tem interrogado o arquipélago através de crónicas, do teatro, também do romance. Regressa agora a esse elo afetivo e identitário com um livro sem género (vários são os que convoca) que mapeia a passagem de Jacques Brel pela cidade da Horta, em setembro de 1974. A história é conhecida: cansado de tanta exposição pública, o cantor belga rumou às ilhas Marquesas. Nos Açores, esteve doente, foi assistido, fez cumplicidades. Costa Santos parte desse episódio para reconstituir uma vida inteira de génio e de música, num hábil e estimulante diálogo com as letras de Brel. Em paralelo, há uma reflexão sobre a paternidade, a do cantor e a sua, certamente a prometer desenvolvimentos em escritos futuros. Um livro sobre o que persiste na memória coletiva e nas vivências pessoais. Elsinore, 160 págs., €16,65
4. Junky
William S. Burroughs
William S. Burroughs (1914-1997) é um dos nomes cimeiros da Beat Generation, na qual militaram escritores tão fortes como Ginsberg, Kerouac ou Ferlinghetti. Autor de alguns dos textos (The Naked Lunch) ou poemas mais emblemáticos desse movimento, Burroughs estreou-se, em 1953, com um livro de contorno autobiográfico que revela as suas origens, o seu posicionamento no mundo, o que o levou à escrita. É certo que antes deste livro já havia escrito outro, a meias com Kerouac (E os Hipopótamos Cozeram nos Seus Tanques), publicado apenas em 2008. Mas é aqui que podemos encontrar a raiz do que viria a escrever, em prosa e em verso, sempre no limite, frenética e diretamente. Deambulação pelos opiáceos e pela guerra, Junky é ainda um retrato da América que saiu dos dois conflitos mundiais, com os seus anseios e sonhos, as suas grandezas e enganos. Minotauro, 204 págs., €17,90
5. As Revolucionárias
Maria João Lopo de Carvalho
O subtítulo deste livro revela bem o que vamos encontrar nas suas páginas: Doze Mulheres Portuguesas Desobedientes. A autora, Maria João Lopo de Carvalho, já antes se tinha dedicado a esmiuçar as vidas de mulheres portuguesas marcantes (Padeira de Aljubarrota, Severa e Marquesa de Alorna). Desta vez, escolheu uma janela temporal para se debruçar sobre percursos relevantes, e muitas vezes surpreendentes, de mulheres em Portugal. Todas as 12 biografadas aqui reunidas nasceram no século XIX e afirmaram-se, sem pedir licença, no período da Primeira República. A mais nova, Maria Lamas, tinha 17 anos quando, em 1910, a monarquia terminou; a mais velha, a escritora e ativista Maria Amália Vaz de Carvalho, nasceu em 1847. O que todas têm em comum não é um impulso revolucionário e progressista no sentido mais político desses termos. O caso de Domitila de Carvalho é paradigmático: monárquica e, depois, entusiasta de Salazar, não foi, por causa disso, menos pioneira (seria a primeira mulher a ingressar, em 1891, na Universidade de Coimbra, onde estudou Medicina, Filosofia e Matemática) e, à sua maneira, “revolucionária”, se olharmos para a História pela lente do feminismo. Todos os 12 textos/biografias revelam o esforço da autora em acrescentar novos dados sobre figuras muitas vezes esquecidas na sombra da História (para estas pesquisas, Maria João teve uma Bolsa de Criação Literária do Ministério da Cultura). P.D.A. Sibila Publicações, 352 págs., €19,80
6. Mulheres Más
María Hesse
“Más” é um adjetivo guarda-chuva para o que chamam às mulheres “quando nos afastamos da linha que nos traçaram”, escreve María Hesse neste livro ilustrado, carregado de ironia e provocação, que começa nos deuses do Olimpo e termina em Kate Winslet, a atriz que na minissérie Mare of Easttown (HBO) exigiu que “não lhe apagassem uma única ruga ou gordura do corpo.” Socorrendo-se de vários exemplos, ficcionais ou reais (Pandora, Eva, Madame Bovary, Helena de Troia, Komako Kimura, Britney Spears, Morgana, Urraca, Yoko Ono), e misturando algumas passagens autobiográficas, a autora e ilustradora espanhola faz uma leitura “muito pessoal” da história de mulheres apresentadas ao longo dos tempos como exemplos a não seguir. São “princesas passivas, bruxas perversas, mães maldosas, femmes fatales, loucas apaixonadas” de olhos grandes, acentuados, e cores fortes. I.B. Iguana, 168 págs., €19,95
7. Portuguesas com M Grande
Lúcia Vicente
Em Portugal, nos últimos anos, têm sido editados vários livros biográficos, para crianças e jovens, que dão especial importância às mulheres. Nesta edição revista e aumentada de Portuguesas com M Grande, de Lúcia Vicente (com ilustrações de Cátia Vidinhas), descreve-se a vida de 50 mulheres de várias épocas, com vidas e ocupações diferentes – rainhas, padeiras, escritoras, atrizes, políticas, aviadoras, desportistas… Pioneiras, destemidas e independentes são adjetivos que se podem evocar para falar de Branca Edmée Marques, cientista e primeira catedrática em Química, da médica Carolina Beatriz Ângelo, primeira mulher a votar em Portugal, da poeta e deputada Natália Correia, de Margarida de Abreu, mãe da dança portuguesa ou de Bárbara Virgínia, primeira mulher portuguesa a realizar uma longa-metragem, Três Dias sem Deus, que esteve presente na primeira edição do Festival de Cinema de Cannes, em 1946. I.B. Nuvem de Tinta 144 págs., €17,45
8. Mulheres e Resistência
Rita Rato (coord.)
O artigo 5.º da Constituição de 1933 garantia a “igualdade dos cidadãos perante a lei”, mas esse princípio era contrariado umas linhas mais adiante. A exceção era a mulher, devido às “diferenças resultantes da sua natureza e do bem da família”. É nesse contexto hostil que Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa publicam as Novas Cartas Portuguesas, em abril de 1972. O livro valeu-lhes um processo em tribunal sob acusações de “insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública”. A audácia das três escritoras era o episódio central da exposição Mulheres e Resistência – “Novas Cartas Portuguesas” e Outras Lutas, que esteve no Museu do Aljube, Lisboa. O catálogo agora lançado inclui um conto inédito de Djaimilia Pereira de Almeida e um poema de Maria do Rosário Pedreira, além de perfis de outras combatentes antifascistas, e de uma cronologia (1934-1974) com lutas protagonizadas por mulheres no Estado Novo. P.D.A. Tinta-da-China/Museu do Aljube, 120 págs., €18,90
FICÇÃO
9. Limpa
Alia Trabucco Zerán
Culpa não tem, mas ainda considera a confissão necessária. Perante uma morte, todas as suspeitas recaem sobre a empregada. Assim é Estela Garcia, a protagonista do segundo romance de Alia Trabucco Zerán. Nascida em 1983, a escritor chilena tem tido enorme empenhamento político na sua escrita, quer quando aborda o peso da ditadura (La Resta, o seu primeiro romance), quer quando analisa a fuga à norma (Las Homicidas). Em Limpa reencontramos esse olhar social, fortalecido pelo contraste entre estatutos. Estela Garcia será a empregada interna de uma família rica de Santiago, ela que vem do Sul e da pobreza, deixando a mãe numa barraca de divisão única e com o telhado de zinco a precisar de arranjos. Relegada às tarefas diárias e a um quarto para lá da cozinha, ela ocupa, no entanto, o lugar de observadora privilegiada. Nessa proximidade, revela-se o teatro das relações humanas, as suas conveniências e convenções (mais impostas do que vividas). E é justamente essa intimidade revelada que primeiramente seduz o leitor, envolvido depois na retrospetiva de sete anos de dedicação e solidão, contados a partir do momento em que a prisão e a culpa (ainda que injustificada) rompem o seu silêncio. Um romance sobre ricos e pobres, servidores e servidos, com a sensibilidade de uns e o pouco bom senso de outros. Tudo para dar voz e visibilidade a quem não a tem. Elsinore, 248 págs., €18,45
10. Tudo é Rio
Carla Madeira
Capítulos curtos, prosa direta, linguagem enxuta, tema quente. Quem vem da publicidade não esquece a arte que molda o seu ofício. Com um longo currículo nessa área e agência própria, a brasileira Carla Madeira arriscou lançar este romance, em edição de autor, em 2014, depois de o ter guardado na gaveta durante uma década. Diz que levou tempo a conseguir lidar com partes da narrativa que ela própria escreveu e a reencontrar-se no texto, o que não deixa de ser uma boa forma de publicitar o livro. Certo é que, uma vez lançado, foi conquistando leitores até chegar a uma grande editora, a Record, que também lhe publicou A Natureza da Mordida e Véspera. Os três formam uma trilogia centrada em personagens fortes. Em Tudo é Rio, Lucy, prostituta que gosta do seu ofício, e o casal Venâncio e Dalva, lidando com o buraco negro em que caíram, formam um trio (também amoroso) levado aos limites de si próprios. Infinito Particular, 194 págs., €18,50
11. Santa Evita
Tomás Eloy Martínez
Reedição do mais célebre romance de Tomás Eloy Martínez (1934-2010) e um dos grandes romances argentinos (e da América Latina) do século XX. Ressurge agora integrada na coleção A Vida Privada dos Livros, dirigida por Alberto Manguel para a Tinta-da-China e um prolongamento do programa homónimo da RTP. A fama do romance é fácil de explicar. Começa no título – Santa Evita – e na sua protagonista: Eva Perón. Venerada por multidões, a segunda mulher de Juan Perón, militar e Presidente da Argentina por três mandatos, é um dos ícones (para o bem e para o mal) do século XX, como o musical de Andrew Lloyd Webber e Tim Rice, posteriormente adaptado ao cinema, o mostrou. Mas Eloy Martínez coloca-a – e esse é o génio deste romance – já morta, focando a narrativa o destino do seu corpo e os feitos do passado, numa mistura entre facto e ficção. O material, afinal, dos grandes mitos. Tinta-da-China, 400 págs., €19,90
12. As Primas
Aurora Venturini
“Por fim, um júri honesto”, disse Aurora Venturini quando recebeu, já com 85 anos, o Prémio Nueva Novela de Página/12. E essa afirmação resume toda a sua vida. Por um lado, um certo silenciamento da sua obra. Por outro, a sua frontalidade, nunca recusando o passado e as suas opções. Nascida em La Plata, na Argentina, em 1921, foi amiga próxima de Eva Perón e autora com alguma visibilidade no início do seu percurso. Depois, veio a Revolução de 1995 que depôs Perón, o seu exílio (do Presidente e da escritora), a continuada entrega à escrita e a invisibilidade dos seus livros. Ao fim de décadas, o galardão para novos autores com um original escrito à máquina e uma consagração tardia, em 2007, oito anos antes da sua morte. As Primas é, nesse sentido, um testamento literário, a história de uma família (que também é a de um país) através da vida de duas mulheres e da crença de que a arte, a imaginação e a escrita são sempre o melhor antídoto. Alfaguara, 208 págs., €18,45
13. Leitura Fácil
Cristina Morales
Pelo estilo, estrutura e enredo, Leitura Fácil é um dos mais estimulantes e desafiantes romances espanhóis dos últimos anos. É também a prova da vitalidade e diversidade da literatura que se faz no país vizinho, cada vez mais plural e em busca de novos temas, outras lutas. Cristina Morales nasceu em Granada, em 1985, e começou por se destacar com Los Combatientes, a que se seguiram Introducción a Teresa de Jesús e Terroristas Modernos. Leitura Fácil, o seu mais recente romance, lançado em Espanha, em 2018, tem como protagonistas quatro mulheres que partilham um apartamento da Segurança Social devido às “incapacidades intelectuais” identificadas pelos serviços do Estado. À parte isso, têm em si todos os sonhos do mundo. O génio e o talento de Cristina Morales estão justamente na capacidade de entrar na mente de mulheres que não deixam de sonhar e de promover as suas guerrilhas, sempre que necessário. É que Nati, Patri, Marga e Àngels não obedecem, nem desistem: querem viver plenamente. O romance segue pelo mesmo caminho. A “leitura fácil” (escrita simplificada para quem tem “aquelas incapacidades”) do título é só aparente, já que o livro se desdobra no romance que Àngels está a escrever, num fanzine, nas atas de um grupo de “okupação” e, sobretudo, no fluxo de consciência de quem é diferente e pouco se importa com isso. Sibila, 400 págs., €21,50
14. Os Meus Dias na Livraria Morisaki
Satoshi Yagisawa
De tempos a tempos, editam-se em Portugal romances e autores que nos permitem aprofundar o conhecimento da literatura japonesa. Claro que há muitos e grandes autores nipónicos publicados entre nós, mas estes bestsellers inesperados abrem janelas para quotidianos e códigos culturais por vezes tão diferentes. É o que encontramos em Os Meus Dias na Livraria Morisaki, de Satoshi Yagisawa (como havíamos encontrado em Uma Questão de Conveniência, de Sayaka Murata). Na livraria da família, Takako reencontra o seu lugar no mundo e, sobretudo, na sua relação com o outro. Os seus dias continuam a fazer-se de pequenos gestos, mas a conversa (até a que se faz na leitura) ganhou espaço em relação ao silêncio (incluindo o interior). Um romance sobre o poder transformador da literatura, no Japão como em qualquer outro lugar. Presença, 144 págs., €13,90
15. Laranjeira-Amarga
Jokha Alharthi
Nascida em Omã, em 1978, Jokha Alharthi é uma das mais internacionais escritoras árabes da atualidade. Ter vencido o Man Booker International Prize, em 2019, com a tradução inglesa de Corpos Celestes (lançado inicialmente em 2010), foi decisivo para o reconhecimento de uma romancista que questiona o lugar da mulher na sociedade, com enredos que cruzam várias gerações. O interesse pela sua obra tem permitido novas traduções, incluindo a deste Laranjeira-Amarga, seu terceiro romance (de 2016), publicado depois de Corpos Celestes. O retrato dos sonhos das mulheres árabes é feito, neste caso, através das vidas de uma avó e de uma neta. Esta, a estudar no Reino Unido e ao confrontar-se com uma realidade tão diferente, recorda os desafios que a sua ascendente também teve de atravessar na Península Arábica. Entre passado e presente, a mesma luta: a conquista da liberdade. Relógio d’Água, 208 págs., €18
16. Internato
Serhij Zhada
A par das reportagens de tantos jornalistas enviados à Ucrânia, algumas compiladas em livro já referidos nestas páginas, a literatura continua a ser a melhor forma não para compreender a guerra em curso mas para dela ter a sua trágica dimensão humana. Mesmo quando as obras em causa não resultam dos conflitos mais recentes, como é o caso deste Internato, de Serhij Zhadan (ou de Abelhas Cinzentas, de Andrei Kurkov), estão lá as raízes do conflito, o quotidiano virado do avesso, o medo, a desorientação e a ausência de esperança. Publicado originalmente em 2017, Internato lança-nos para o Leste da Ucrânia (onde Zhadan nasceu, em 1974), epicentro dos atuais e antigos desentendimentos. Com a cidade bombardeada, um jovem professor procura trazer o sobrinho para casa. Mas, pelo meio, há uma cidade a ferro e fogo. Um retrato brutal dos limites a que a Humanidade pode chegar. Elsinore, 352 págs., €21,95 euros