“Esta Torre não se sabe bem de quantos séculos podemos datá-la, mas o certo é que Dom Raymundo da Barbela – crê-se que tenha sido o primeiro grande home da família da Torre – saiu estas bandas para ajudar com os seus homes as cargas de Dom Afonso Henriques, seu primo colateral. As pedras são todas da prumitiba, mesmo perto da torreta que leva à casa de defesa ainda se leem umas ascrições latinas que rezam a sepultura de Dom Martim, morto de adigestão quando de uma lampreiada para festejar as vitórias dos primos Barbelas. Tem a Torre trinta e dois metros de altura, é a maór da região e os degraus contam-se em oitenta e nove, com patamares de descanso. A vista lá do alto é grandiosa.”
Começa assim a visita guiada pelo caseiro que papagueia “invenção de traz-no-bolso, lérias de almanaque” aos turistas, assoberbados pela construção minhota triangular e imponente nas margens do rio Lima, como um verso material da cantada nação valente. E a que os presentes donos nada ligam, metáfora do País que estima pouco o que é seu.
O mais importante escapa aos visitantes: a Torre da Barbela é um “mundo sonâmbulo”, em que os defuntos, incluindo apátridas, filhos ilegítimos, freiras ou os que “remotamente pertenciam à venerável espérmia da família”, se erguem, desdenhando o seu destino de poeira, trazendo “os amores e ódios de outras eras”.
Neste fresco histórico-fantástico, desfila uma corte com séculos entre si e discursos descompassados: um Cavaleiro de aventuras e uma Madeleine frívola e francesa envolvidos num equívoco amoroso que fará a Torre entrar em polvorosa; um poeta Dom Raymundo que se desfaz em versos, uma princesa Brites de conversas picantes, os Dom Pero e Dom Payo chegados das terras de Prestes João, um frei, uma bruxa, um bobo, uns parentes deslumbrados… “A Torre, como a História, só registava os feitos dos seus mais independentes defensores”, por entre o perfume das rosas e a sombra dos carvalhos.
Ruben Alfredo Andresen Leitão (1920-1975), primo de Sophia de Mello Breyner, cria um mundo à procura de si mesmo, original, cheio de picardias, animado por uma vitalidade extraordinária da linguagem. Belo alçapão para celebrar o centenário de nascimento do autor (a 26 de maio), a que se juntarão, no segundo semestre de 2020, as reedições da novela Silêncio para 4 e da autobiografia O Mundo À Minha Procura. Salve, Ruben A.
O romance A Torre da Barbela (Livros do Brasil, 384 págs., €8,80), editado em 1965, foi antecedido, na obra de Ruben A., por Caranguejo (1954) e Silêncio para 4 (1973), ficções de um percurso literário marcado pelos escritos autobiográficos