“Não luto por nada nem jamais lutarei, portanto não me façam perder tempo iniciando lutas. Se ergues o punho, eu quebro-o. Se ergues a língua, arranco-ta da boca.” Eis o manifesto do Batedor, guerreiro implacável, cujo nome de família esqueceu porque era “propriedade do pai”, homem alcoólico e abusador a quem ele dá uma lição. Nunca o leitor saberá se houve um parricídio ou se o filho apenas o transforma “num imbecil”. É que há dois finais para esta história contada pelo Batedor a um parceiro de cela, tal como há fluidez constante nas peripécias e nas bulas de muitas personagens em Leopardo Negro, Lobo Vermelho.
Mudanças de espécie, de cor da pele, de lealdades e bandeiras e geografias (há um mapa desenhado pelo autor, tal como Tolkien fazia) são constantes neste livro de aventuras movediças, semelhante a uma noitada de bebedeira junto à fogueira. A África ancestral e dita pré-colonial do romance é um mundo delirante, e Marlon James reclama e reinventa a sua mitologia, transfigurando-a por via da literatura fantástica – sem esquecer a ironia do próprio ao dizer, em tempos de reivindicação da representatividade da cultura negra, que isto era “uma Guerra dos Tronos africana”.
Caçadores transmorfos (o Leopardo do título), fadas do bosque, vampiros, albinos, feiticeiros necromantes, monstros antropófagos, gémeos siameses, sereias da terra, conhecidas como “jengus da lama”, tróis [sic], duendes invisíveis, todos fazem a sua aparição neste livro regado a sangue e violência, suor e sexo – e sem sedução linguística. O suspense é arrumado ao primeiro parágrafo: “A criança está morta. Não há mais nada para saber.” A história anda, então, às arrecuas: o Batedor é contratado para encontrar um rapaz desaparecido e tem de se defender dos outros mercenários. Uma demanda a que se juntarão parceiros extraordinários, a que só falta um trono de ferro ou um anel que a todos una.
Leopardo Negro, Lobo Vermelho (Relógio D’Água, 648 págs., €23) é o segundo livro traduzido em português do autor jamaicano, depois de Breve História de Sete Assassinatos (2016), vencedor do Man Booker Prize e do American Book Award.