
Sam Shepard, o autor, dramaturgo premiado com um Pulitzer e ator nomeado para um Oscar, filtra, pela última vez, imagens, ideologias, temas familiares
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Quando já não conseguia escrever, quando a esclerose lateral amiotrófica adensou a ameaça do golpe final, Sam Shepard passou a ditar este livro para um gravador, com esforço e ajudado pelos filhos, amparado na sua lucidez melancólica, e no conforto da sua casa do Kentucky, onde, aos 73 anos, faleceu, em julho de 2017. E reencontra-se a voz do “homem da fronteira” na respiração de frases curtas, na emoção domesticada.
O dispositivo narrativo de Espião na Primeira Pessoa é simples, uma acrobacia entre invenção e memória: um jovem observa um idoso que perde a liberdade do seu corpo, o velho questiona-se sobre tudo. Falam de si mesmos, ao falar do outro. Falam de fins, de segredos, do próprio Shepard e dos Estados Unidos da América. É um posto de observação, uma “janela indiscreta”, por onde o autor, dramaturgo premiado com um Pulitzer e ator nomeado para um Oscar, filtra, pela última vez, imagens, ideologias, temas familiares, sabendo que “o passado não vem como um todo. Vem sempre em partes”. Começa com uma prisão subtil: “Visto à distância. Isto é, a ver do outro lado da estrada, é difícil dizer a idade dele por causa do alpendre fechado com rede a toda a volta. Por causa dos óculos escuros a toda a volta. Roxos. O Mascarilha. Bandido mascarado. Não sei o que está a proteger. (…) Está sentado numa cadeira de baloiço que parece ter sido retirada de um Cracker Barrel. De facto, ainda tem a corrente de segurança partida à volta de uma perna.” Continua com o exorcismo da doença: “Fizeram-me todos os exames. Lá no meio do deserto. Do deserto pintado. Terra de apaches. Terra de saguaros. (…) E observaram a deterioração.” Há de chegar à história norte-americana, a que inclui uma avó inglesa, imigrante ilegal saída de um barco, gangues chicanos e verbos espanhóis, e à era Trump: “A posse de uma carta verde significa que não se tem de trepar um muro? Que não se tem de cavar um túnel? Que não se tem de estar preocupado com o sítio onde nasceu a mãe?” Uma despedida poética.

A edição final de Espião na Primeira Pessoa (Quetzal, 104 págs., €14,40) foi feita com a ajuda e a cumplicidade da cantora Patti Smith, amiga e ex-namorada de Shepard, uma autora que também escreveu sobre o passado e outras matérias frágeis
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