Meio século depois do seu desaparecimento, John Coltrane continua a ser religião e transcendência, aquela que provoca no ouvinte, como que um impulso que nos puxa para fora do mundo. Sem surpresas, a notícia da descoberta das sessões de Both Directions at Once, as quais estariam ao cuidado da primeira mulher do saxofonista, Naima, chamou todas as atenções. Coisa rara, na era de todas as reedições e redescobertas, esta de encontrar inéditos congelados no tempo. Tudo se passa num só dia, 6 de março de 1963, estava Coltrane entre uma residência no Birdland, clube de jazz, em Nova Iorque, e a gravação de vários discos, como o histórico A Love Supreme, em dezembro do ano seguinte. Ouvimo-lo aqui com aquele que ficou conhecido como o seu “quarteto clássico”, McCoy Tyner no piano, Jimmy Garrison no contrabaixo, e Elvin Jones na bateria. E ouvimo-lo sem grandes amarras nem tradições, como se lê nos elogios que lhe fazem as extensas notas de músicos e de historiadores, que acompanham esta edição.
Não é claro se a intenção seria transformar as gravações em álbum, já que, no dia seguinte e naquele mesmo estúdio, o grupo fazia precisamente isso, juntando-se à voz de Johnny Hartman para gravar um disco de baladas. Ainda assim, Both Directions at Once, que reúne originais e gravações que soarão familiares (Nature Boy e Vilia), é um importante testemunho da hiperatividade criativa de Coltrane (como o provam também os seus solos com saxofone soprano) e um recorte poderoso do impacto musical do jazz e de um dos seus maiores autores – ou não o continuássemos nós a ouvi-lo em todo o lado, do hip-hop ao RnB.