“Onde é que a história da nossa família contamina a nossa história individual?” A questão é colocada na parte final do segundo romance de Bruno Vieira Amaral (BVA), mas já antes era possível intuí-la. Em Hoje Estarás Comigo no Paraíso, o autor parte da noite de 25 de fevereiro de 1985, data do assassínio do seu primo João Jorge, morto aos 21 anos “como um porco, com a faca usada para os abrir”. BVA tinha 7 anos. “Para mim, João Jorge nasceu na noite em que o mataram”, escreve. Já no romance de estreia do autor, o multipremiado As Primeiras Coisas (2013), João Jorge era uma das entradas do seu dicionário de personagens suburbanas, apresentado como Joãozinho Treme-Treme.
“Não são os mortos que falam connosco, nós é que precisamos desesperadamente de os ouvir.” O leitor acompanha esta busca, por vezes obsessiva, assistindo aos dilemas éticos do narrador, que a espaços se sente um profanador da memória. A literatura é o seu espaço de refúgio. Há referências a Gabriel García Márquez, W.G. Sebald ou Margaret Atwood, que o faz levantar “a hipótese de toda a ficção ser uma tentativa de resgatarmos alguém do mundo dos mortos”. BVA opta pelo ponto de vista da vítima como Kamel Daoud em Meursault, Contra Investigação que narra a história d’O Estrangeiro, de Camus, do ponto de vista do árabe assassinado. A obra do autor argelino é citada em epígrafe: “Ninguém tem direito a um último dia, somente a uma interrupção acidental da vida.” Uma ideia ponderada para título, vencida pelo versículo do Evangelho Segundo S. Lucas “hoje estarás comigo no paraíso”, dito por Jesus a um dos ladrões que seria crucificado com ele. A lembrança enquanto forma de salvação. A contaminação de memórias reais e imaginadas que compõem o romance revela mais sobre os vivos do que sobre os mortos. A fronteira entre realidade e ficção torna-se irrelevante perante a força de uma narrativa que se aproxima de uma ideia de verdade sustentada pela mestria do pormenor e crueza da linguagem.
“Talvez a minha questão com João Jorge passe pela aferição do grau de liberdade de um homem e, consequentemente, do seu grau de submissão”, lê-se. Talvez a questão de João Jorge passe pela sujeição de todos nós às circunstâncias. Por vezes felizes. Por vezes trágicas.
Em Hoje Estarás Comigo no Paraíso (Quetzal, 363 págs., €17,70), a fronteira entre realidade e ficção torna-se irrelevante perante a força de uma narrativa que se aproxima de uma ideia de verdade sustentada pela mestria do pormenor e crueza da linguagem