Ficaram célebres, na antiguidade clássica, as vidas paralelas que Plutarco escreveu nos primeiros anos do império romano. Eram biografias normais, como tantas que se fizeram na altura e ao correr dos séculos, mas com uma especificidade: colocavam sempre duas figuras lado a lado. Assim, acreditava o historiador, os seus elementos (comuns ou opostos) saíam reforçados. O retrato era completo. Na sua coleção Livros Amarelos, a Guerra & Paz tem proposto ao leitor exercício semelhante. Em cada livro, dois textos que falam ou, como diz a editora, “amam- -se, negam-se, tocam-se uns aos outros”. Não se trata apenas da famosa associação livre dos surrealistas, que juntavam tudo e o seu oposto. É a nobre arte de editar e de colocar num único catálogo autores que, em conjunto, revelam afinidades, dissonâncias e outros pontos de vista.
Os recentes lançamentos da coleção são bons exemplos desses propósitos. No primeiro, e mais ousado, o bíblico Cântico dos Cânticos, atribuído ao Rei Salomão, surge ao lado de Manual de Civilidade para Meninas e de Uso nas Escolas, do belga Pierre-Félix Louÿs, que no início do século XX fez furor (e escândalo) com este livro. É verdade que os textos vivem de metáforas, alegorias e subentendidos, mas os caminhos são diametralmente opostos. O Cântico, em “versão” de Eugénia de Vasconcelos, é só delicadeza, enquanto o Manual é alegremente escatológico. E, no entanto, nos dois, como sugere Manuel S. Fonseca na apresentação do volume, “há uma vontade de regresso ao Paraíso, a esse momento anterior à culpa que se gerou, quando Adão e Eva morderam o fruto do conhecimento”.
A comunhão entre A Célebre Rã Saltadora do Condado de Calaveras, de Mark Twain, e Rikki-Tikki-Tavi, de Rudyard Kipling, é mais direta, tanto na mensagem, como na forma. Na linha de La Fontaine, são fábulas que sugerem outras interpretações. De resto, os protagonistas das duas histórias remetem para a presença de semelhantes animais em obras maiores da literatura mundial. “Dois hinos à leitura”, garante, noutra introdução, Manuel S. Fonseca. “Não há rã, nem há mangusto mais célebres na história do último século e meio de literatura. A rã inventou-a Twain, fazendo da liberdade e do humor os elos da sua cadeia alimentar de escritor. O mangusto desenhou-o Kipling, numa linguagem fluente que casa um imbatível sentido de estrutura com um assumido moralismo”. Ler em dose dupla para partir em busca de inesperados sentidos.
A par das leituras cruzadas que propõe, esta coleção destaca-se pelo grafismo e paginação, que chegam a dar vida aos textos. Outros motivos para regressar a textos mais ou menos conhecidos e encontrar neles novidades. Um bom exemplo de como (re)editar clássicos.