São muitas as histórias guardadas no baú das memórias do Cascais Jazz, o festival que, de 1971 a 1988, trouxe até Portugal alguns dos maiores nomes do jazz mundial. Corria o ano de 1971, quando João Braga e Luís Villas-Boas (também conhecido como o “pai do jazz em Portugal”) conseguiram iludir a censura e realizar finalmente o sonho de organizar um grande festival de jazz. Com um cartaz de luxo, que faz ainda hoje qualquer fã desejar ter nascido umas décadas mais cedo, só para poder ver, no mesmo palco, lendas como Ornette Coleman, Miles Davis, Dizzy Gillespie ou Thelonious Monk, o Cascais Jazz representou uma verdadeira pedrada no charco no marasmo cultural e social do regime de então. “Foi uma coisa de loucos. O Pavilhão do Drámatico não tinha as mínimas condições. O chão era de terra e a instalação eléctrica foi colocada de borla, quase na véspera, pela empresa do engenheiro Azevedo e Silva, para quem eu trabalhava na altura. Se não fosse ele não teria havido festival”, recorda com humor o produtor de concertos de jazz Duarte Mendonça, 78 anos, co-organizador do Cascais Jazz a partir de 1974 e agora responsável pelo seu ressurgimento em versão século XXI.
A ideia surgiu-lhe há dois anos, durante uma tarde de praia no Algarve. “Questionei-me sobre o que teria acontecido à marca Cascais Jazz. Quando cheguei a Lisboa, liguei para o Instituto de patentes e registei a marca e o logotipo”, lembra. Em seguida contactou Maria Helena, a viúva de Villas-Boas, que apoiou de imediato o projecto. Tal como aconteceu com a Câmara de Cascais, que vai aproveitar a ocasião para homenagear Villas-Boas, desaparecido há 10 anos, com uma sessão solene antes do concerto de abertura, a cargo do veterano saxofonista americano Lee Konitz. “Para esta primeira edição o objectivo é reavivar o espírito original do Cascais Jazz”, desvenda Duarte Mendonça. Para isso, o produtor foi buscar alguns dos músicos que passaram pelo antigo festival. “Tudo gente de idade avançada, como eu, mas que continuam, ainda hoje, a tocar em grande forma”, refere. São os Guests of Honour de um cartaz que inclui ainda nomes da nova geração e representantes do jazz nacional.
O momento mágico de Miles Davis
O primeiro a subir ao palco, nessa distante noite de 20 de Novembro de 1971, foi Miles Davis. Foi o próprio trompetista que fez questão de ser o primeiro a tocar, num concerto lendário, que ficaria na memória dos 10 mil espectadores presentes, uma audiência que só superada pelo Festival de Vilar de Mouros, realizado quatro meses antes. “Foi um dos melhores momentos da história do festival. O público escutou-o em silêncio e depois, no final, explodiu num imenso aplauso. Foi algo de mágico”, lembra Duarte Mendonça. “Eu e o Villas Boas já o tínhamos visto cerca de 10 anos antes, num festival em França, em que chegou ao palco acompanhado de uma banda de miúdos, que ninguém conhecia de lado nenhum” (risos). Eram eles Herbie Hankock (piano), Ron Carter (contrabaixo), George Coleman (Sax) e Tony Willians (bateria). “10 anos depois estava a vê-lo novamente, mas desta vez em Portugal, num concerto em que tocou trompete com pedal de distorção, uma coisa nunca antes vista.” Não podia haver melhor começo para um festival que, mesmo assim, poderia ter visto a sua história terminada logo nessa noite, quando, durante o concerto do saxofonista Ornette Coleman, o baterista Charlie Handen dedica o tema Song for Che aos movimentos de libertação de Angola e Moçambique. A maioria do público, no qual se incluíam nomes como Amália Rodrigues, Adriano Correia de Oliveira, Alexandre O’Neil ou Zeca Afonso, levantou-se imediato num aplauso ao músico, com muitos dos espectadores a levantarem o punho cerrado em saudação comunista. A polícia de choque ameaçou intervir, mas o espectáculo continuou. Quanto ao músico, foi levado para os calabouços da PIDE e depois entregue pelas autoridades à embaixada americana, para ser repatriado. As ameaças de cancelamento acabaram por não se concretizar e o festival lá prosseguiu na segunda noite, mas sob a condição de estarem presentes, entre o público, algumas centenas de agentes da PIDE, que tiveram o privilégio de assistir a outro dos momentos históricos do Cascais Jazz, a actuação do supergrupo Giants of Jazz, que incluía nomes como Thelonious Monk ou Dizzy Gillespie.
“No tempo da ditadura o festival era visto e vivido como um espaço de liberdade. O que explica também a grande afluência de público. Até os músicos ficavam admirados com tanta gente”, recorda Duarte Mendonça. Ao longo de 18 anos, primeiro no Dramático de Cascais e depois no Pavilhão dos Salesianos, o Cascais Jazz trouxe a Portugal alguns dos maiores vultos da história do jazz, como Sara Vaughan, B.B. King, Charles Mingus, Sonny Rollins, Toots Thielem. “Os músicos estavam desejosos de vir, porque eram sempre muito bem recebidos pelo público. No início as pessoas iam mais pelo espírito que propriamente pelo jazz, mas depois muitos ficaram fãs. Não tenho dúvidas que há hoje muito mais gente a gostar de jazz por causa deste festival.”