Quase 180 anos e muita evolução científica se colocam entre a primeira cirurgia feita com anestesia geral e os procedimentos anestesiológicos atuais, suportados por tecnologias com sistemas de Inteligência Artificial e fármacos em que a genética e a nanotecnologia começam a ter um papel relevante.
O dentista William Morton e o cirurgião John Warren foram revolucionários em 1846 quando, no Hospital Geral de Massachusetts, nos Estados Unidos da América, anestesiaram um paciente para o operarem sem dor a um tumor no maxilar. A revista científica New England Journal of Medicine considera que esta foi “a centelha crucial da transformação, o momento que mudou não apenas o futuro da cirurgia, mas o da medicina como um todo”. William Morton utilizou um gás que permitia a anestesia e a ausência de sofrimento. No fim da cirurgia, e virando-se para a galeria cheia de estudantes de Medicina, John Warren exclamou: “Senhores, isto não é uma farsa!”
William Morton deu à sua invenção o nome de Letheon, a partir do rio Lethes, que segundo a mitologia grega era o rio do esquecimento – beber das suas águas fazia-nos esquecer memórias dolorosas. Uma história bonita, mas, na verdade, a mistura de Morton era apenas éter retificado.

O dentista William Morton e o cirurgião John Warren usaram éter para anestesiar um paciente para o operarem sem dor a um tumor no maxilar, em 1846, no Hospital Geral de Massachusetts, EUA Fotos: GettyImages
Um ano antes, em 1845, William Morton já tinha participado noutra demonstração, em Harvard, dirigida por Horace Wells, desta vez com óxido nitroso (gás hilariante), mas foram descredibilizados quando o pobre estudante que se tinha submetido a uma extração de um dente gritou de dor no auditório.
As substâncias que também são usadas de forma “recreativa” têm uma longa ligação ao entorpecimento da dor. Ainda hoje, tendo em conta que a cetamina, por exemplo, é uma das drogas que podem estar presentes na mistura. Antes da invenção da anestesia, era o álcool que aliviava o tormento de ser operado consciente. Para os mais abonados, naturalmente, tratados em casa, porque quem se dirigia aos hospitais mais não levava do que um pedaço de couro para colocar entre os dentes.
Há registos muito antigos do uso de cascas de salgueiro, mastigadas para tratar febre e dores várias. Os incas usavam folhas de coca como anestesia quando realizavam as trepanações cranianas. Na Europa da Idade Média era comum o uso da esponja soporífera, que se dava a cheirar aos pacientes depois de mergulhada numa mistela que continha ópio.
O próprio éter era, no século XIX, um inebriante comum. Foi assim que o médico Crawford Long descobriu as suas propriedades anestesiantes, fazendo amputações e extirpando tumores, anos antes de William Morton. A luta pela paternidade da anestesia não foi bonita e a ganância até fez Morton querer patentear o éter, coisa que não conseguiu.
Avanços espantosos
Antes deste momento, uma amputação ou a mera extração de um dente eram atos dolorosos e muitas vezes exigiam contenção física do doente. Para abreviar o suplício do paciente, o cirurgião trabalhava o mais rápido possível, em detrimento da qualidade do ato médico. Ao operar de forma muito lenta e cuidadosa, o cirurgião passou a poder também ir cauterizando os vasos sanguíneos, à medida que avançava, camada a camada.
A invenção foi desde logo benéfica também para as mulheres em trabalho de parto. A rainha Vitória deu o exemplo, em 1853, ao inalar vapores de clorofórmio enquanto dava à luz o príncipe Leopoldo. E, durante a Guerra Civil Americana, as amputações foram um pouco menos violentas do que nas guerras anteriores.
Hoje já não se pode apenas falar em controlo da dor quando se pensa na anestesia numa cirurgia. É preciso acrescentar à analgesia outros dois pilares: amnésia, ou seja, estado de inconsciência, e imobilidade do corpo com relaxamento muscular. “Estes três componentes dizem respeito à anestesia geral. Há também a anestesia regional, na qual é possível o doente estar acordado e ser operado”, explica Fernando Abelha, diretor do Serviço de Anestesiologia do Centro Hospitalar de São João, no Porto.
Na anestesia regional são anestesiados apenas os nervos que dão sensibilidade à região a ser tratada, por exemplo, uma perna ou um braço. Quando está em causa a manipulação do sistema nervoso central, é possível anestesiar de forma temporária o corpo apenas do umbigo para baixo, sendo o exemplo mais comum as epidurais para partos ou cesarianas.
Se William Morton e John Warren visitassem um bloco operatório do século XXI, “provavelmente não reconheceriam nada, porque surgiram novos fármacos e temos meios de monitorização que não existiam na altura. Eles só conseguiam controlar de forma indireta, medindo o pulso e observando o doente”, diz Fernando Abelha.

Numa cirurgia, o anestesiologista verifica diversos sinais vitais do paciente, como a frequência cardíaca, a pressão arterial, a oximetria de pulso, a quantidade de oxigénio em circulação ou os fármacos administrados. “É praticamente impossível fazer uma mistura hipóxica [com pouco oxigénio], porque monitorizamos os gases que administramos, seja oxigénio ou um anestésico volátil, e verificamos a profundidade anestésica através de uma eletroencefalografia modificada para, com alguma segurança, certificar que o doente está adormecido. Assim, minimizamos o risco de o paciente poder acordar, mas com fármacos que o impedem de se mexer. Isso é quase um mito, apesar de já ter dado origem a filmes…”, constata Fernando Abelha.
A Inteligência Artificial tem aqui um papel relevante. “O eletroencefalograma modificado é a Inteligência Artificial a permitir novas maneiras de olhar o cérebro, até para reconhecer a oxigenação cerebral, coisa que era impensável há alguns anos”, salienta o especialista.
Em paralelo, cresce a preocupação com os efeitos do trabalho do anestesiologista meses após uma intervenção. “As causas de mortalidade anestésica andam à volta de um por 100 mil doentes. É uma raridade. No entanto, sabemos que algumas coisas que fazemos no período perioperatório [antes, durante e depois da cirurgia] podem, de alguma maneira, resultar em melhores resultados seis meses ou um ano depois”, diz Fernando Abelha, que tem desenvolvido investigação sobre qualidade de vida no pós-operatório.
Os pacientes idosos recebem particular atenção nesta área, porque têm maior probabilidade de sofrer de disfunção cognitiva e padecer de delirium. “O delirium é uma disfunção neurológica grave no período operatório mais imediato. É uma alteração do estado da atenção”, explica Fernando Abelha.
O impacto do trabalho dos anestesiologistas na oncologia também está em estudo para se perceber até que ponto, mudando a técnica anestésica, se reduz o reaparecimento de tumores e a disseminação de metástases. “Essa investigação é fabulosa e alguns resultados dizem que a utilização da anestesia regional diminui a incidência de metástases, a incidência de recidiva de tumores quando comparada com a utilização de fármacos como os narcóticos”, constata Fernando Abelha.
Dos fármacos aos elétrodos
Houve sempre questões em torno do impacto dos anestésicos na vida dos pacientes. O éter usado na primeira cirurgia com anestesia era muito inflamável. O clorofórmio que se lhe seguiu, em 1847, causava lesões hepáticas ou mesmo morte súbita. Em 1898, a Bayer pôs à venda um novo anestésico que não causaria adição: a heroína. Hoje, ninguém se surpreenderá ao saber que, afinal, os resultados foram exatamente opostos e a empresa teve de retirar a heroína do mercado.
Conhecendo a segurança com que são utilizados os mais recentes medicamentos para anestesiologia, estes exemplos quase parecem anedóticos. De qualquer modo, “a medicina da dor tem evoluído cada vez mais para técnicas que permitam libertar as pessoas dos medicamentos e devolvê-las à vida normal”, diz João Galacho, anestesiologista especialista em Medicina da Dor nas clínicas Paincare – Tratamento Avançado da Dor.
A mortalidade anestésica anda à volta de um por 100 mil doentes. É uma raridade
Fernando Abelha, Diretor do Serviçode Anestesiologia do Centro Hospitalar de São João
A neuromodulação e a neuroestimulação são terapêuticas não farmacológicas baseadas em eletricidade que respondem a esta filosofia de trabalho. “Colocamos dispositivos na coluna, na medula ou junto aos nervos. Dispositivos que, através de tecnologia biomédica, criam corrente elétrica no nervo para modular, alterar o funcionamento do nervo e a informação que esse nervo encaminha para o cérebro, que é o sítio onde sentimos a dor. Utilizamos o mecanismo de funcionamento dos nervos para mudar aquilo que eles estão a transmitir ao nosso cérebro”, elucida.
Um ou mais elétrodos são implantados, através da pele, no corpo para que, juntamente com um aparelho de controlo, o paciente receba cuidados personalizados. Assim, o “doente tem perceção de melhoria da dor, melhoria da capacidade funcional diária, melhoria do sono e melhoria do humor”, acrescenta o especialista.
Tudo mudou ao longo do tempo, mas há algo que parece ter-se mantido imutável desde que William Morton anestesiou o primeiro paciente numa cirurgia. Hoje, como antigamente, os anestesistas procuram diminuir a dor e melhorar a qualidade de vida do doente.
Da mandrágora à farmacogenética
As drogas que encontramos na anestesia
A procura de métodos anestésicos é milenar, no entanto, muito mudou desde que os cirurgiões do Império Romano recomendavam o uso de mandrágora e vinho. Os incas apostavam nas folhas de coca e na Europa da Idade Média dava-se a cheirar ao doente uma esponja embebida em ópio. Antes da inovadora introdução do éter, em 1846, usou-se o “gás hilariante” (óxido nitroso). Seguiu-se o clorofórmio, em 1847, e a cocaína em 1877 para utilização na anestesia local. Estes fármacos foram sendo progressivamente substituídos por outros, como o anestésico local injetável novocaína e o anestésico para indução e manutenção da anestesia geral, halotano. Entre as décadas de 70 e 90 do século XX, foram lançados outros medicamentos, como o anestésico propofol, o bloqueador muscular vecurónio ou a famosa cetamina, agora tão em voga como tratamento de depressões resistentes. Usada também no mercado negro como “droga alucinogénia”, a substância apresenta “inúmeras vantagens em relação aos fármacos clássicos porque é a única que conjuga a hipnose com a analgesia”, explica o médico João Galacho. No entanto, “tem uma série de efeitos secundários (como as alucinações visuais e auditivas…), que a tornam longe de ser perfeita”.
Atualmente, a investigação científica está a usar a genética e a nanotecnologia para levar a farmacologia mais longe. Por exemplo, para aumentar a duração da bupivacaína, foi criada a bupivacaína lipossómica, em que o medicamento está contido em nanopartículas e é libertado lentamente para o nervo, estendendo o seu efeito por 36 ou 48 horas. Por outro lado, a farmacogenética avalia as alterações genéticas de um indivíduo para perceber como é que um medicamento específico é metabolizado pelo corpo. Após isso, o médico adapta a dosagem em conformidade com os resultados.
Pequena história da anestesiologia
Entorpecer a dor tem técnicas milenares. Mas consideramos aqui os últimos dois séculos
1846
No Hospital Geral de Massachusetts, William Morton e John Warren anestesiaram pela primeira vez um paciente para o operarem a um tumor no maxilar, usando éter retificado. No entanto, o médico Crawford Long já o teria feito, anos antes, com vários pacientes seus, mas só viria a publicar as suas descobertas em 1949, depois de Morton.
1847
O anestésico clorofórmio é utilizado num parto pela primeira vez em Edimburgo, na Escócia, por James Simpson.
1853
Alexander Wood, em Edimburgo, na Escócia, combina uma seringa com uma agulha oca, criando a injeção hipodérmica. No mesmo ano, a rainha Vitória populariza o uso do clorofórmio, inalando os seus vapores enquanto dava à luz o príncipe Leopoldo.
1854
O professor de canto Manuel Garcia descobre o uso de espelhos para ver a laringe, iniciando a laringoscopia indireta.
1856
A respiração artificial é descrita pela primeira vez na revista científica The Lancet pelo médico Marshall Hall.
1884
Karl Koller, um oftalmologista vienense e amigo de Sigmund Freud, começa a usar a cocaína nas suas cirurgias.
1891
Heinrich Quincke leva a técnica de punção lombar para a prática clínica.
1895
Em Berlim, Alfred Kirstein faz a primeira laringoscopia direta.
1898
A primeira anestesia raquidiana (na espinal medula) é administrada por August Bier, usando cocaína.
1900
Primeiro relato de utilização de anestesia raquidiana para parto vaginal, feito por Oskar Kreis.
1917
Henry Boyle desenha a sua primeira máquina de anestesia.
1923
Winfield Ney opera pela primeira vez um tumor cerebral sob anestesia local.
1975
Nakajima testa o oxímetro de pulso desenvolvido pela empresa japonesa Minolta.
1994
A empresa norte-americana Aspect Medical Industries desenvolve o eletroencefalo-grama modificado (Bispectral Index – BIS) para monitorizar a profundidade anestésica.
2001
Começa a ser comercializado o primeiro videolaringoscópio, o GlideScope.
