A síndrome de Pica – também conhecida por alotriofagia – é uma perturbação alimentar caracterizada pela ingestão persistente de substâncias não alimentares ou sem valor nutricional. Uma doença compulsiva que leva a que as pessoas tenham muita dificuldade em controlar a vontade de comer determinados objetos como, por exemplo, pó de talco, giz, argila ou terra, borras de café, cascas de ovo, fezes, cabelo, gelo, sabão e até alimentos destinados a animais de estimação.
Foi o caso de Mary (nome fictício) que contou ao jornal britânico The Guadian como desenvolveu o vício de comer acendalhas aos 11 anos. Mary, que já “mastigava as borrachas dos lápis, comia papel e cera de vela”, voluntariava-se para acender a lareira nas noites de frias de inverno só para sentir o cheiro das acendalhas. Um dia, depois de “um acontecimento muito stressante”, acabou por ceder ao “cheiro das acendalhas que tinha andado a cheirar e provei-as”, conta.
Apesar do que se possa pensar, este transtorno é relativamente comum, mas os estudos sobre o mesmo ainda são escassos. De acordo com Melinda Karth, investigadora em ciências psicológicas e distúrbios alimentares na Universidade de Purdue, no estado norte-americano do Indiana, a falta de investigação sobre o tema pode ficar a dever-se a “variações nas definições de pica nos estudos e [a] uma relutância nos adultos em admitir que comem ‘coisas anormais’”, explica ao jornal britânico.
Em 2022, um estudo com mais de 2 mil pessoas, publicado na revista Epidemiology and Psychiatric Sciences, concluiu que cerca de 5% dos participantes relataram pelo menos um episódio de comportamento de pica, enquanto 1% disseram que era recorrente. “As taxas de pica são normalmente mais elevadas em pessoas com deficiências intelectuais ou lesões cerebrais do que em pessoas com um funcionamento cerebral normal”, referiu Karth.
Embora muitas vezes possa parecer inofensiva, a pica pode ser particularmente perigosa dependendo dos objetos que forem ingeridos. Se por um lado, comer gelo – muito comum em grávidas – é inofensivo, ingerir objetos tóxicos ou perigosos pode implicar consequências de saúde graves. Por exemplo, comer grandes quantidades de cabelo pode resultar em complicações de saúde, ao ficar preso no trato digestivo e dar origem a obstruções intestinais, perfurações, deficiências nutricionais ou intoxicações. Já pessoas que sentem o desejo de comer argila ou terra podem acabar por ingerir parasitas que vivem no solo.
O que causa a pica?
Não se sabe ao certo o porquê de várias pessoas desenvolverem Pica, que pode surgir em qualquer idade. Esta é, contudo, mais frequentemente encontrada em crianças – especialmente com menos de 6 anos de idade – mulheres grávidas e pessoas com determinados problemas de saúde mental – como autismo, deficiências intelectuais ou esquizofrenia.
Algumas investigações científicas sugerem que determinados fatores aumentam o risco de desenvolvimento da perturbação como:
- Stress ou ansiedade: Para muitas pessoas este transtorno pode servir como um mecanismo anti stress ou uma forma de aliviar a ansiedade – de forma semelhante ao tabaco. “Alguns indivíduos podem utilizar o consumo de produtos não alimentares como um mecanismo de defesa contra o stress, a ansiedade ou traumas”, explicou Varsha Krishna Gade, especialista em nutrição, ao Hindustan Times;
- Experiências traumáticas: De forma semelhante, a ingestão de substâncias não alimentares também ajuda pessoas a lidar com traumas, infligidos sobretudo durante a infância. Este dado pode ajudar a explicar o motivo de a pica aparecer mais comumente em crianças, sobretudo as que vivem em situações socioeconómicas mais debilitadas;
- Deficiências nutricionais: Segundo alguns estudos realizados sobre esta doença, pessoas que desenvolvem pica têm frequentemente a falta de alguns nutrientes como o ferro, o cálcio e o zinco. “Uma das causas potenciais do distúrbio alimentar é a carência de nutrientes, nomeadamente de ferro ou de zinco. A pica é mais comum nas mulheres grávidas e pensa-se que está relacionada com as alterações dos níveis hormonais e das necessidades de nutrientes durante a gravidez”, disse Gade;
- Condições médicas: A gravidez é um exemplo de condições relacionadas com a pica. A perturbação tende a desaparecer por si só, após a gravidez;
- Medicação: Certos medicamentos aumentam o risco de alguém desenvolver pica ou comportamentos semelhantes, sugere algumas investigações.
A síndrome está ainda associada a condicionantes culturais e religiosas, dado que, em certas culturas, é socialmente aceite e até comum a ingestão de substâncias não alimentares. Por exemplo, em certas regiões de África, algumas comunidades tendem a ingerir argila ou terra para aumentar a fertilidade, aliviar sintomas desconfortáveis durante a gestação e garantir a saúde do feto. “Muitas mulheres em países com rendimentos elevados também procuram ativamente a terra”, referiu Sera Young, professora na Universidade de Northwestern, no Illinois, EUA, também ao The Guardian. “Está sobretudo associada à gravidez e a deficiências de micronutrientes, especialmente na anemia”, acrescentou.
A principal forma de tratamento para a pica é a terapia, existindo poucos medicamentos suscetíveis de ajudar a tratar a pica. Contudo, esta ainda é uma doença considerada tabu, e muitas vezes, as pessoas que dela sofrem dizem sentir-se envergonhadas com a sua condição. Por este motivo, muitos doentes com este distúrbio não procuram ajuda médica ou falam sobre o distúrbio. “Não ouvi falar de mais ninguém que tenha tido uma experiência semelhante”, disse Mary.
Em algumas ocasiões, os inibidores seletivos da recaptação da serotonina (ISRS), prescritos para a depressão e perturbação obsessivo-compulsiva, diminuem a vontade de ingestão de não alimentos. “Há uma redução da serotonina no cérebro que pode estar a contribuir para os comportamentos compulsivos e a impulsividade. Por isso, é possível que a pica também possa estar relacionada com baixos níveis de serotonina no cérebro”, explicou Karth.
Em crianças, de forma semelhante a grávidas, esta doença costuma desaparecer sozinha, especialmente após aprenderem a diferença entre objetos e alimentos.