Há umas semanas, o cantor norte-americano Justin Bieber anunciou o cancelamento de alguns dos concertos sua da digressão internacional Justice World Tour devido a uma paralisia facial do lado direito, provocada pela síndrome de Ramsay-Hunt, contou, depois, o artista num vídeo publicado na sua conta de Instagram. Esta doença é provocada pelo mesmo vírus da varicela e, além da paralisia, também causa fortes dores de ouvido e vertigens.
A história de Bieber trouxe à tona uma discussão sobre esta síndrome e o vírus responsável por ela, o vírus do Herpes Zoster, que se manifesta de outras formas, por vezes graves. Na verdade, este vírus está presente no sistema nervoso de mais de 90% das pessoas com mais de 50 anos. A zona, pelo qual é frequentemente conhecida, e que afeta 1 em cada 3 adultos ao longo da vida, em especial com o avançar da idade devido à deterioração gradual do sistema imunitário e nos doentes crónicos ou imunocomprometidos, é uma das manifestações do vírus. Em entrevista à VISÃO, Alberto Mota, dermatologista e Professor de Dermatologia da Faculdade de Medicina do Porto, explica tudo o que precisa de saber sobre a doença e formas de a prevenir.
Quais são as manifestações mais comuns do vírus do Herpes Zoster, além da síndrome de Ramsay Hunt que afetou mais recentemente o cantor Justin Bieber?
O vírus Herpes Zoster, designado como vírus varicela-zoster (VVZ), pertence à grande família dos vírus Herpes, que causam doença nos seres humanos, muitas das quais com envolvimento da pele e das mucosas, como é o caso do conhecido herpes labial, que afeta muita gente. Contudo, o VVZ é muito diferente do herpes labial, causando no primeiro contacto a varicela e, quando se reativa, o Herpes Zoster ou zona. Chama-se assim porque, em contraste com a varicela, a erupção do Herpes Zoster é habitualmente mais restrita a uma área da pele ou das mucosas. O que acontece é que, após o primeiro contacto, habitualmente como varicela declarada, o VVZ fica latente numa parte dos nervos sensitivos do tronco (que partem da coluna vertebral) ou da cabeça (os nervos cranianos). A memória imunológica de defesa, que se desenvolve após o primeiro contacto, é suficiente, na maioria das pessoas, para conter o vírus, evitando que se reative e cause nova doença.
E quando essa memória imunológica falha?
A memória imunológica vai reduzindo com a idade e face a doenças que causam imunodeficiência (como a infeção por VIH) e tratamentos imunossupressores. Isso explica porque a zona é mais comum a partir dos 50 anos e nos doentes imunodeprimidos ou imunossuprimidos por tratamentos. Quando ocorre essa reativação, devido às defesas imunológicas se tornarem incapazes de conter o vírus na sua latência, instala-se a zona, primeiro na forma de uma dor aguda, por vezes tão forte que se confunde com emergências médicas, como o enfarte do miocárdio ou o ventre agudo. Depois, instala-se a erupção cutânea, essencialmente composta por inflamação e pequenas bolhas, designadas de vesículas, que fica contida, isto é, na “zona” correspondente ao nervo sensitivo onde o vírus se reativou. Se for um nervo da cabeça, habitualmente um dos ramos do chamado nervo trigémio, pode ocorre o herpes zoster oftálmico ou o ótico (dos ouvidos), mas habitualmente é um nervo do tronco. O caso mediático de Justin Bieber reporta-se a uma consequência neurológica grave de um herpes zoster ótico.
Como é que os doentes sentem a zona?
A dor que precede e acompanha a erupção da pele causa morbilidade significativa, pois muitas vezes necessita de analgésicos potentes para a controlar. Outras consequências são a infeção secundária das lesões da pele por bactérias, necessitando de antibiótico, e as neurológicas. Estas últimas dependem da localização da zona. No tronco, a zona pode complicar com uma dor crónica, que persiste muito além da resolução da erupção, conhecida como nevralgia pós-herpética. Esta dor é muitas vezes extrema e de difícil controlo, necessitando de referenciar o doente a consultas especializadas da dor. Tal como a zona, a probabilidade desta nevralgia aumenta com a idade do doente. Na cabeça, o zoster oftálmico é uma emergência médica, porques o doente corre o risco de cegar. O zoster dos ouvidos tem a possibilidade, para além da surdez, de se acompanhar de paralisia do principal nervo motor da nossa face, precisamente o nervo facial, situação que ocorreu no caso do cantor em questão, designada como síndrome de Ramsay-Hunt. Alguns casos de zona dos membros acompanham-se de perda da força muscular do respetivo membro, simulando AVCs. Hoje sabemos que, para além do neurotropismo, o VVZ pode afetar vasos sanguíneos e aumentar o risco de acidentes vasculares cerebrais e de enfarte do miocárdio. Há, adicionalmente, alguma evidência de que a zona aumente o risco de alguns cancros. Nos imunodeprimidos, a zona pode ser mais grave e mais disseminada, chegando o vírus a infetar o sistema nervoso central. Não esquecer que as lesões ativas da pele são infetantes, podendo causar varicela a uma pessoa suscetível, incluindo grávidas, cujas consequências para o feto podem ser muito graves.
Mas há cura para a doença? Que tratamentos existem para a tratar?
Um pouco à semelhança de um episódio de herpes labial, a erupção da zona tende a resolver ao fim de poucas semanas. Contudo, as complicações, como a nevralgia pós-herpética, podem persistir meses ou anos, ou serem mesmo irreversíveis, como algumas das oftalmológicas e neurológicas. O tratamento com antivírico é essencial, já que acelera a cicatrização e reduz o sofrimento do doente e a possibilidade de este infetar pessoas suscetíveis. Estes tratamentos são cómodos para o doente, porque são administrados por via oral. Só nos casos mais graves ou em doentes com as defesas muito baixas é que há necessidade de internamento para o tratamento por via intravenosa. Contudo, a eficácia do tratamento depende da sua instituição precoce, portanto, um correto e atempado diagnóstico da zona é fundamental.
Mais de 90% das pessoas com mais de 50 anos vivem com este vírus latente no seu sistema nervoso. Porque é que isto acontece? O vírus sobrevive durante muito tempo no organismo e muitas vezes não chega a manifestar-se?
Habitualmente, quando contactamos pela primeira vez com o VVZ, ele manifesta-se na forma de varicela, que é uma doença muito contagiosa, essencialmente caraterizada por uma erupção generalizada das tais pequenas bolhas ou vesículas. Como este contacto é habitualmente precoce, a varicela é essencialmente uma doença pediátrica, tão carismática que quase todos os exantemas (erupções cutâneas vermelhas) que contenham vesículas chegam a ser cunhados como varicela. Contudo, o primeiro contacto pode ser assintomático e é tão frequente que atinge os níveis de percentagem populacional que menciona. Pensa-se que após o primeiro contacto, o vírus fica latente, como que “adormecido”, nos gânglios de nervos sensitivos. Provavelmente, assim fica toda a vida na maior parte das pessoas, sem causar nova doença, desde que as defesas imunológicas que se formaram após o primeiro contacto permaneçam em níveis suficientes para impedir o vírus de se tornar a replicar. O problema está no facto de esse nível poder diminuir com a idade, sobretudo após os 50 anos e com doenças ou tratamentos que reduzem essas defesas, aumentando respetivamente o risco de zona para cerca de 20 e 50%. Sabe-se, também, que os traumatismos e o stress podem induzir a replicação do VVZ. Com o aumento dos transplantes de órgãos, bem como a introdução crescente de fármacos imunossupressores e imunomoduladores para o controlo de doenças autoimunes e inflamatórias, é previsível que o risco de zona possa proporcionalmente aumentar.
Apesar dessas previsões, é possível prevenir a zona?
Dada a elevada morbilidade da dor e da erupção, assim como a cronicidade, gravidade e irreversibilidade de algumas das complicações da zona e os atrasos no seu diagnóstico e tratamento, mais vale prevenir do que remediar. Sabemos que desde que se mantenha a tal imunidade de memória em níveis suficientes, o vírus não se reativa e não há zona. Para tal, é necessário refrescar essa memória, sobretudo nas situações em que tem maior probabilidade de diminuir, a partir dos 50 anos. Dado que a generalidade da população não contacta com o VVZ com uma frequência suficientemente mantida para obter esses níveis de proteção, o mesmo pode ser obtido através da vacinação.
As pessoas ainda não têm conhecimento suficiente sobre esta doença? O que importa fazer nesse sentido?
Como em muitas situações, as pessoas dão valor e ficam a conhecer a zona e, definitivamente, não a esquecem, quando as próprias ou pessoas mais próximas são dela vítimas, e são muitas. Em alguns casos, poderá ser tarde para prevenir complicações. O lema será sempre divulgar, divulgar, divulgar…
A prevenção vacinal é desafiante, pois implica, também, mudar o paradigma desta abordagem no adulto. Habitualmente, as pessoas tendem a pensar que as vacinas são assuntos das crianças e que os adultos já não precisam tanto delas, como se vê nos casos do reforço do tétano, da gripe e do sarampo (nos adultos que não foram vacinados em criança). Contudo, a recente pandemia de covid-19 veio demonstrar que a necessidade de proteção vacinal não tem limite de idade e é altamente eficaz. No caso particular da zona, o aumento da população com idade avançada, com o consequente declínio da memória imunológica, bem como o crescente recurso a terapêuticas imunossupressoras, coloca um novo desafio.