A pandemia da Covid-19, provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, trocou as voltas a uma certa previsibilidade de outros vírus respiratórios mais comuns, não só no que respeita à sua sazonalidade como aos seus efeitos na saúde humana. Não é ainda possível medir todas as consequências que daí podem advir, até porque a variante Ómicron do novo coronavírus continua ativa em largas fatias das populações, mas a relação está mais do que estabelecida.
As medidas de combate à pandemia estão na base do problema. Os confinamentos e o trabalho remoto, o uso de máscaras e o distanciamento social contribuíram, durante mais de dois anos, para uma escassa exposição aos diversos vírus que causam doenças respiratórias. Sem esse contacto, o sistema imunitário tornou-se menos hábil para reconhecer e enfrentar os diferentes agentes patogénicos, deixando-nos mais vulneráveis. O que antes provocava infeções que dispensavam idas ao hospital, a maioria das quais sem qualquer sintoma associado, pode agora obrigar a internamentos.
“Todos nós estamos com menos defesas, todos nós temos menos anticorpos para impedir infeções e isso torna-nos mais suscetíveis”, admite Pedro Simas, investigador principal do Instituto de Medicina Molecular da Universidade de Lisboa.
Para exemplicar a importância do contacto com os vírus no desenvolvimento de sistemas imunitários robustos, o virologista recorre aos ciclos da gripe. Depois de um ano com muitos casos, a tendência é para a incidência diminuir no ano seguinte, fruto da maior imunidade adquirida. O contrário, por regra, também acontece: menos casos num ano conferem menor proteção para o seguinte.
“Nunca na história mais recente, pelo menos nos últimos 80 anos, houve um confinamento global ao ponto de não haver transmissão de vírus da gripe. Se agora estivemos praticamente sem casos durante dois anos, é natural que o próximo inverno seja complicado”, antecipa.
O mesmo tipo de raciocínio é válido para os restantes vírus do trato respiratório: menor exposição é sinónimo de menor proteção. “O simples facto de respirarmos, seja no local de trabalho, nos transportes públicos, nas lojas, etc., faz com que contactemos com agentes infecciosos várias vezes ao longo da vida. Só que, na maioria dos casos, somos infetados por vírus e nem damos por isso, porque o sistema imunitário responde de tal maneira que nem chegamos a ter sintomas”, explica o epidemiologista Manuel Carmo Gomes, da Faculdade de Ciência da Universidade de Lisboa. “Sempre que isso acontece, o sistema imunitário reforça uma espécie de memória sobre esse vírus, aumentam os anticorpos circulantes contra o mesmo e ficamos mais protegidos durante um certo tempo”, acrescenta.
Crianças mais vulneráveis
As crianças correm mais riscos, concordam os dois especialistas, neste regresso progressivo à normalidade após dois anos de maior isolamento. “É normal que tenham infeções com sintomas e que as infeções surjam fora das épocas habituais”, concede Carmo Gomes, tendo em conta as poucas defesas consolidadas durante a pandemia.
Adenovírus, rinovírus, vírus sincicial respiratório (VSR), metapneumovírus humano (hMPV), influenza, parainfluenza, coronavírus. Estes sete vírus respiratórios foram responsáveis por admissões hospitalares, num dado momento do mês passado, no hospital pediátrico de Yale, no estado norte-americado do Connecticut, conta o Washington Post. “Não é típico em qualquer altura do ano e, certamente, não é típico em maio e junho”, afirma ao referido jornal Thomas Murray, especialista em controlo de infeções e professor na faculdade de Medicina da Universidade de Yale, no departamento de Pediatria.
Os surtos de gripe no verão passado e nesta primavera são exemplos de alterações na sazonalidade destes vírus nos Estados Unidos da América. Em 2021, o VSR também surgiu “fora de época” e, por cá, as autoridades de saúde já identificaram o mesmo “desvio”. É um vírus que costuma estar mais presente nos períodos de outubro/novembro e de abril/maio e cuja transmissão, em Portugal, tinha diminuído durante a pandemia.
Pedro Simas não acredita que o padrão de prevalência da gripe fuja dos meses de inverno, nem isso lhe tira o sono, desde que a população acima dos 65 anos esteja vacinada. Inquieta-o mais um eventual descontrolo do vírus VSR, “o mais preocupante de todos”, pelo perigo que pode representar em crianças pequenas. “Os dois primeiros anos são os mais críticos porque, quando a infeção chega aos pulmões, causa uma inflamação grave. É como se os brônquios e as vias respiratórias estreitassem, e as crianças podem asfixiar.”
Está muito longe de ser o cenário mais comum, convém sublinhar. Trata-se de um vírus que afeta quase todas as crianças antes dos dois anos e cujos sintomas correspondem, na maior parte dos casos, aos de uma constipação. Sendo a principal causa de doença das vias respiratórias inferiores até aos cinco anos, está associado, também, a bronquiolites, otites e conjuntivites. Recém-nascidos, prematuros, crianças imunocomprometidas ou com outras doenças crónicas são os grupos de maior risco, assim como os idosos, por terem um sistema imunitário menos capacitado.
“Andámos dois anos de máscara, a transmissão destes vírus a nível comunitário parou e é óbvio que as crianças de dois anos não criaram qualquer imunidade. Agora que existem muitos mais hospedeiros, uma população em geral com menos anticorpos e crianças sem imunidade, há um espaço de oportunidade para os vírus infetarem, por isso devemos estar muito atentos”, recomenda Pedro Simas, que por tudo isto se opõe à ideia de usar máscaras para combater a gripe: “Assim nunca mais saímos deste ciclo. Seria pior a emenda do que o soneto.”
Habitualmente inofensivos, os adenovírus, por seu lado, estão no centro das atenções da Organização Mundial de Saúde. São eles o principal suspeito do misterioso surto de hepatite aguda infantil que já levou a vários transplantes de fígado e à morte de crianças, nestes primeiros meses do ano. A luta contra a pandemia da Covid-19 teve e continua a ter muitas implicações, no mundo inteiro. Influenciar as consequências de alguns vírus “rivais” é mais uma para adicionar à lista.