Uma nova revisão de vários estudos publicada na revista científica Lancet e realizada por seis especialistas do Reino Unido, EUA e Canadá, concluiu que o SARS-CoV-2 se transmite principalmente pelo ar, identificando 10 evidências que sustentam essa conclusão.
A discussão sobre se o coronavírus se transmite ou não pelo ar começou logo no início da pandemia. Em março do ano passado, a Organização Mundial de Saúde (OMS) afirmava que o vírus não era transportável pelo ar, mas, pouco tempo depois, foi publicado no National Institutes of Health um estudo do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos, que concluiu que o SARS-CoV-2 se mantinha em suspensão até três horas.
Na altura, numa nota enviada à VISÃO, Carlos Matias Dias, coordenador do Departamento de Epidemiologia do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, referiu que “nunca se irão fazer estudos com pessoas – fazê-las respirar determinadas gotículas do vírus – daí a dificuldade e a aparente contradição”. O epidemiologista acrescentou que “o vírus em suspensão pode ser sempre inalado, mas em ambiente de rua estes aerossóis são dispersos pelo vento, vão caindo pela força da gravidade e ficam nas superfícies”.
Em setembro do ano passado, José Luis Jiménez, professor de química na Universidade do Colorado em Boulder, nos EUA, e um dos cientistas que realizou esta nova revisão, criticou a OMS pela sua visão relativamente ao contágio pelo ar, referindo que a organização se focava em gotículas e não em aerossóis, sendo que as primeiras viajam pelo ar mas caem no solo depois de um ou dois metros; já os aerossóis podem permanecer suspensos no ar e, consequentemente, provocar infeção durante mais tempo, explicou, na altura, o cientista à BBC.
Jiménez acrescentou que a OMS precisava de considerar de forma mais séria o facto de os aerossóis poderem ser um importante meio de propagação do vírus, já que as medidas de prevenção deste vírus adotadas por cada país seriam, certamente, intensificadas. Agora, a equipa liderada por Trish Greenhalgh, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, garante que as evidências que apoiam a transmissão do coronavírus pelo ar são “esmagadoras”, mas as “evidências que apoiam a transmissão por gotículas grandes são quase inexistentes”. “É urgente que a Organização Mundial da Saúde e outras agências de Saúde Pública adaptem as suas diretrizes relativas à transmissão às evidências científicas”, garante a equipa.
Surtos pelo mundo e transmissões de forma silenciosa
Na revisão dos especialistas, a equipa destacou um surto que aconteceu num coro de Skagit, nos EUA: 53 pessoas ficaram infetadas a partir de um único caso de infeção. Estudos confirmaram que eventos como este não conseguem ser explicados a partir do contacto próximo ou pelo toque em superfícies ou objetos partilhados (um novo estudo do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças americano concluiu que existe apenas uma em 10 mil hipóteses de infeção ao contactar com um objeto ou uma superfície contaminada). Os cientistas afirmaram, também, que encontraram pouca ou nenhuma evidência de que o vírus se propaga facilmente a partir de grandes gotículas, que caem rapidamente pelo ar e contaminam as superfícies.
“Se tivermos em conta apenas a inalação de aerossóis a curta e longa distância, podemos explicar os muitos surtos que ocorreram em todo o mundo”, explica Kimberly Prather, cientista da Universidade da Califórnia, em San Diego, e uma das autoras do estudo.
Esta revisão pegou, também, em investigações que concluíram que a transmissão do SARS-CoV-2 é maior em ambientes internos do que nos externos e é substancialmente reduzida por ventilação interna. Estas mesmas investigações, garante a equipa, na revisão, sustentam a transmissão por via aérea como a mais predominante.
Os cientistas abordaram, também, uma investigação que concluiu que a transmissão do coronavírus de forma silenciosa, isto é, assintomática, é responsável por 40% ou mais de todos os casos. Segundo a revisão, este estudo sustenta a teoria de que a transmissão do vírus faz-se, predominantemente, a partir do ar. Além disso, a equipa cita outras investigações que demonstram a capacidade de transmissão de longo alcance deste vírus entre pessoas em quartos de hotel diferentes, que nunca estiveram uma com a outra.
A equipa citou, também, estudos que envolveram animais infetados e não infetados que foram isolados em jaulas e interligados apenas por dutos de ar. Sendo que houve transmissão do vírus, estas investigações mostraram que esta pode ser feita apenas através de aerossóis.
Os investigadores falam ainda sobre as infeções nosocomiais (adquiridas nos hospitais) observadas em vários locais, onde houve precauções estritas e uso de equipamento de proteção individual projetado para proteger contra a exposição a gotículas, mas não a aerossóis contaminados.
“Embora alguns trabalhos individuais tenham sido avaliados como fracos, no geral a base de evidências para transmissão aérea é extensa e robusta”, afirma Trish Greenhalgh, referindo ainda que “não se deve atrasar mais a implementação de medidas em todo o mundo para proteção contra este tipo de transmissão”. A equipa de investigadores diz, portanto, que se devem intensificar medidas que dêem mais enfoque à prevenção da transmissão do coronavírus através dos aerossóis que ficam em suspensão no ar, como as de ventilação e filtragem de ar.
“É bastante surpreendente que alguém ainda se questione sobre se a transmissão aérea é a via de transmissão predominante deste vírus ou não”, acrescenta Prather.