“Sobrecarga” é a palavra escolhida pelo presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), Rui Nogueira, para classificar a situação atualmente vivida nos centros de saúde.
O volume de trabalho dos médicos de família tem-se vindo a multiplicar devido à necessidade de fazerem o acompanhamento telefónico – diário – dos doentes suspeitos ou infetados com Covid-19 em isolamento em casa. “Na maior parte dos casos, não se justifica que seja um médico a fazê-lo, porque as pessoas estão assintomáticas ou têm sintomas ligeiros. Às vezes, surgem dezenas de novos doentes infetados, por dia, a quem é preciso telefonar”, contabiliza Rui Nogueira.
Ao mesmo tempo, passaram a dar consultas a doentes suspeitos ou positivos nas áreas dedicadas à Covid-19. E também há médicos de família que estão a ser solicitados para visitar os lares. “Tudo isto veio condicionar muitíssimo a nossa atividade”, afirma. Assim, sobra menos tempo para atender os doentes não-Covid.
E, lamenta Rui Nogueira, nada foi feito para acautelar esta sobreposição de tarefas. “Alguma coisa devia ter sido preparada no verão e não foi”, acusa. “Não há uma diretiva superior explícita sobre a organização dos centros de saúde”, acrescenta.
O médico denuncia, ainda, que os centros de saúde perderam, pelo menos, cerca de 60 clínicos desde abril, sem contar com aqueles que se terão reformado nos últimos meses.
“Nós não podemos deixar de ver os doentes não-Covid ou passar a ver muito poucos”, defende. “Ainda não recuperámos o atraso provocado pela pandemia e não é admissível voltar a adiar tantas consultas”, afirma.
Curiosamente, o número de consultas realizadas pelos cuidados de saúde primários, entre janeiro e setembro deste ano, apenas desceu 2,6%, comparativamente com o período homólogo. No entanto, cerca de 54% das consultas foram à distância (12 milhões num total de quase 23 milhões), o que significa que as consultas presenciais caíram quase 40%. “Mas há doentes que precisam mesmo de ser vistos”, alerta o médico de família, destacando aqueles que sofrem de doenças cardiovasculares, oncológicas ou de problemas de saúde mental.
Lutar contra os números
Portugal tem, atualmente, cerca de 65 mil casos ativos de Covid-19, o que está a provocar uma pressão acrescida em todo o sistema de saúde. “Temos o triplo dos casos ativos a nível nacional, comparativamente com o mês de maio, mas em algumas localidades o aumento pode ter sido dez vezes mais”, nota.
Na quarta-feira, 4, estavam internadas 2 337 pessoas infetadas com o coronavírus, 325 delas nos cuidados intensivos.
O ministério da Saúde autoriza os hospitais a suspenderem a atividade não urgente, durante o mês de novembro, para responderem à pressão imposta pela pandemia.
Perante estes números, “tudo indica que vamos ter de limitar a assistência presencial, outra vez, por causa da pandemia”, lamenta o presidente da APMGF.
Esta quarta-feira, 4, o ministério da Saúde emitiu um despacho que autoriza os hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) a suspenderem a atividade não urgente durante o mês de novembro para responderem à pressão imposta pela pandemia.
Rui Nogueira não se furta a sugerir soluções para alivar a sobrecarga dos centros de saúde e garantir a manutenção do atendimento dos doentes não-Covid. Adiar ou deixar de realizar algumas atividades não essenciais e contratar mais recursos humanos são algumas das propostas.
“As consultas de vigilância de crianças e jovens, entre os 2 e os 18 anos, podem perfeitamente ser adiadas seis meses, desde que não colidam com a vacinação”, ilustra, já que é previsível que daqui a meio ano a segunda vaga da pandemia tenha serenado.
O presidente da APMGF também considera desnecessário que os médicos tenham de introduzir os dados de todos os casos suspeitos de Covid na plataforma SINAVE (Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica), na qual se registam as doenças de declaração obrigatória. “Faria sentido introduzirmos só os casos confirmados, até porque depois temos de eliminar os casos suspeitos que não se confirmaram, que são cerca de 90%”, aponta.
Deixar doentes para trás
O médico do centro de saúde Norton de Matos, em Coimbra, admite que existem consultas de vigilância que podem ser feitas pelo telefone. “Podemos monitorizar a medicação ou avaliar os exames complementares de alguns pacientes à distância e perceber, tranquilamente, que aquelas consultas de rotina podem ser adiadas”, explica, antes de ressalvar que “consultas pelo telefone não são o mesmo que teleconsultas”. Na maior parte dos centros de saúde, o contacto com os doentes é feito através de simples chamadas telefónicas, e não de videochamadas.
Mas nem todos os contactos presenciais podem ser adiados. Por isso, Rui Nogueira alerta para o perigo de os doentes não-Covid voltarem a ficar para trás. “Podem morrer 40 pessoas com o coronavírus num dia, mas também morrem 250 com outras patologias”, contabiliza.
Além de defender a contratação de mais profissionais para assegurar a assistência aos doentes, o médico sugere que também sejam chamados trabalhadores qualificados já aposentados ou que aqueles que têm a sua atividade limitada pela pandemia, como psicólogos, nutricionistas ou dentistas, sejam mobilizados para, por exemplo, ajudarem a fazer o acompanhamento telefónico dos doentes infetados com Covid-19.
Outra medida para diminuir o afluxo de pessoas aos centros de saúde seria, acredita, tornar as justificações médicas entregues no trabalho e nas escolas desnecessárias até três dias de doença ou permitir que sejam entregues num prazo de 15 dias.
Rui Nogueira tem esperança que o inverno seja ameno e que com as medidas de prevenção da pandemia, como a utilização de máscara, os vírus respiratórios circulem menos. “A vacina da gripe também pode dar uma ajuda”, acrescenta.
Mas a esperança não basta, “é preciso garantir que temos condições para continuarmos a receber os doentes”, remata.