É quase certo que a sua origem remonta aos morcegos – e um novo estudo divulgado esta semana acrescenta mais peso a essa teoria. Ainda para mais tratando-se de uma análise mais abrangente conduzida por cientistas chineses. O problema é que se mantém a área mais nebulosa desta teoria. Ou seja, compreender de que forma é que o vírus passou para as pessoas. E isso, já sabemos, permitiu que, entretanto, se elaborassem as mais loucas teorias da conspiração.
Mas se Trump e os seus apoiantes defendem que resulta de uma fuga de um laboratório na China, a maioria dos investigadores considera bem mais provável que o vírus seja endémico no morcego e tenha depois conseguido servir-se de outro hospedeiro até chegar ao homem.
É, ainda assim, um empreendimento que não está de todo esquecido e foi isso que a Assembleia Mundial da Saúde, principal órgão da Organização Mundial da Saúde (OMS) pediu, em meados de maio, quando aprovou uma resolução a pedir a cooperação com outras organizações internacionais para identificar esse animal que transportou o SARS CoV-2 até aos humanos. A verdade, assumem cada vez mais cientistas, é que isso será muito, muito difícil. Com o problema acrescido de também não se conseguir descartar por completo a tese de que tudo começou no Instituto de Virologia de Wuhan (IVW).
Verdade ou coincidência?
O facto de o IVW, laboratório altamente considerado pelas suas investigações em coronavírus de morcegos, estar localizado na cidade onde o surto apareceu, é, provavelmente, mera coincidência. Mas segue debaixo de fogo porque o principal trabalho que os seus investigadores estão a fazer é exatamente sobre a origem da pandemia. Aliás, vários dos autores do mais recente estudo sobre morcegos trabalham lá. A única fora de ilibar aquela instalação de vez seria uma investigação independente no local. Só que, dada a delicada geopolítica que envolve a questão, a maioria dos cientistas considera tal feito altamente improvável.
O que diz então este último estudo? O que os cientistas chineses fizeram foi analisar sequências parciais de cerca de 1250 coronavírus existentes nos morcegos que vivem no país. Tudo para concluir que o vírus que alimenta a pandemia está mais relacionado a um grupo de outros coronavírus, encontrado nos chamados morcegos-de-ferradura. É uma descoberta que vem na sequência de outra investigação sobre um coronavírus chamado RATG13. Este tinha sido encontrado numa outra família de morcegos na província de Yunnan, no sul da China, e partilha 96% da sua sequência genética com o SARS-CoV-2. A dúvida? Não foi possível eliminar a hipótese de um ancestral seu ter vindo de países vizinhos, como Mianmar ou Laos – onde estes morcegos-de-ferradura muito, muito comuns.
Onde está o intermediário?
Shi Zheng-Li, coautor do estudo em questão, publicado ainda apenas no BioRXiv – o que quer dizer que o trabalho ainda não foi revisto pelos pares – refuta por completo a tese do laboratório. “Devemos preocupar-nos é com os riscos de outra doença semelhante à Covid-19 poder emergir de animais”, salienta. E não é o único a pensar assim.
“Estamos perante um alerta de que há vírus na natureza que podem chegar aos humanos e provocar danos inimagináveis. Tal como este SARS CoV-2 era até há bem pouco tempo”, concorda Volker Thiel, virologista da Universidade de Berna, citado pela Nature.
O que complica tudo isto? É que, apesar de toda a investigação, nenhum vírus de morcego encontrado até agora é suficientemente semelhante ao SARS CoV-2 para ser considerado um ancestral direto. Essa é a razão maior para os cientistas considerarem mais provável que haja um animal intermédio entre os morcegos e os humanos.
As evidências sugerem que um dos coronavírus mais próximo deste, e que entre 2002 e 2003 provocou a conhecida síndroma respiratória conhecida por SARS – passou para as pessoas por intermédio de civetas. O bicho é muito comum por ali, sobretudo na produção dos cafés mais caros do mundo. Tal como os camelos foram a fonte intermediária de outro vírus semelhante e que foi responsável pela síndrome respiratória do Oriente Médio (MERS).
No campo das hipóteses
O que todos defendem agora é que, se fosse possível encontrar um vírus quase idêntico ao SARS-CoV-2 num outro animal, isso seria a prova por que esperamos sobre a forma como foi transmitido às pessoas.
“Só que isso exigiria uma recolha de amostras muito extensa dos coronavírus existentes na fauna e na pecuária, um pouco por toda a China”, assinala Rob Grenfell, diretor da unidade de Saúde e Biossegurança da Organização de Pesquisa Científica e Industrial da Commonwealth, em Melbourne, na Austrália. Segundo fez saber, a China terá iniciado tais investigações, mas divulgou muito pouco sobre o que já terá conseguido saber.
Afinal, investigações semelhantes já tinham sido anunciadas depois da epidemia de SARS. Os primeiros casos daquele surto surgiram em novembro de 2002, mas a causa não foi identificada como coronavírus até abril de 2003.
Até então, as autoridades já suspeitavam que havia mais animais envolvidos, até porque mais de 30% dos primeiros casos na província de Guangdong, na China, onde surto começou, era de trabalhadores de um mercado de animais vivos. Num mês, foi possível descobrir o vírus nas civetas que circulavam por ali – o que permitiu vincula-las aos casos de SARS nas pessoas.
Mas foram precisos 15 anos para Shi ZhengLi ter conseguido encontrar um coronavírus relacionado nos morcegos. E, note-se, apesar de ter encontrado todos os componentes genéticos do vírus da SARS, não identificou um vírus com a mesma e exata composição genética.
Agora, o grande receio da comunidade científica é que possa levar o mesmo tempo a encontrar a fonte do SARS-CoV-2. Mesmo com a ajuda dos modelos computacionais, da biologia celular e demais experiências com animais, até agora ainda está tudo no campo das hipóteses.
Feito em laboratório…
Voltemos ao polémico Instituto de VIrulogia de Wuhan, que acolhe um laboratório de segurança máxima, dos poucos em todo o mundo. É que, embora não haja evidências para apoiar a tese de que o vírus escapou de lá, é também muito complicado descartar de vez a teoria.
É verdade que o laboratório possui uma série de coronavírus próximos do SARS-CoV-2, daí que, em teoria, é possível que alguém se tivesse infetado acidentalmente e depois o tenha passado para alguém fora da instalação. Teoricamente, é também possível que os cientistas do laboratório tenham alterado o genoma do vírus para fins de pesquisa antes disso acontecer, mas – novamente – não há sequer evidências de que o tenham feito.
Perante a insistência de tantos sobre esta tese, em abril o diretor do laboratório, Yuan Zhiming, veio garantir publicamente – em declarações à emissora estatal chinesa CGTN – que este coronavírus não veio dali.
“Sabemos que tipo de investigação está a ser feita e como estes vírus são geridos”, declarou. Mas mais não disse, sublinha a Nature, que fez vários pedidos de entrevista aos responsáveis daquele laboratório. Afinal, uma equipa sua já tinha visitado a instituição em 2017. Na altura, o mesmo Yuan Zhiming fez questão de mostrar os novos equipamentos, salas de teste e até o sistema de ventilação projetado para garantir que todos os agentes patogénicos ali usado seriam contidos com segurança. “Queria mostrar ao mundo as razões para querer construir um laboratório daquele e descrever o seu papel na proteção da nossa saúde”, disse então.
Hipócrita q.b
É igualmente certo que não há registo de acidentes naquele instituto, mas é sabido que alguns vírus já tinham conseguido escapar acidentalmente de laboratórios, inclusive na China. Uma libertação acidental de SARS fora detetada num laboratório em Pequim, a capital da China, em 2004, quando uma série de investigadores locais ficaram doentes. Mas agora não há relato de que quaisquer cientistas do Instituto de Virologia de Wuhan tenham adoecido.
Mas, para determinar se o laboratório tem algo ou não a ver com o coronavírus a circular, era preciso uma investigação forense, sublinham vários cientistas. Como quem diz, “colher amostras no local, entrevistar funcionários e ver que tipo de experiências estavam a ser feitas”, detalha Richard Ebright, biólogo estrutural da Rutgers University em Piscataway, Nova Jersey.
Só que, como lembra Frank Hamill, que anteriormente administrava um laboratório de BSL-4 nos Estados Unidos, também isso pode não ser conclusivo. Hamill, hoje em dia a trabalhar para a MRIGlobal, empresa que faz assessoria a laboratórios de biossegurança, considera que seria de todo o interesse do próprio laboratório ser mais transparente sobre as investigações que está a conduzir. Embora Hamill também saiba bem que os laboratórios de biossegurança dos EUA estão igualmente longe de serem totalmente claros sobre as suas pesquisas.
“Isso deixa-nos numa situação difícil para agora pedirmos ao Instituto de Virologia de Wuhan que abra seus arquivos. É um pouco hipócrita “, diz .
…ou produto da natureza
Já os cientistas fora da China que estudaram o genoma do vírus detalhadamente não têm dúvidas de que emergiu naturalmente e não num laboratório. Veja-se a análise publicada na Nature Medicine em março, na qual se discutem várias características incomuns do vírus, sugerindo que provavelmente surgiram de processos absolutamente naturais.
A explicação é simples: para fazer experiências com o objetivo de modificar geneticamente um vírus, é preciso que se use o RNA de um coronavírus existente como espinha dorsal. Mas o que concluíram foi que nenhum vírus conhecido, e registado na literatura científica, poderia ter servido como espinha dorsal para criar o SARS-CoV-2.
E eis que tudo se complica novamente. Como salienta Jack Nunberg, virologista da Universidade de Montana, que até nem acredita que o vírus tenha vindo de um laboratório: “é improvável que exista um sinal característico de que um genoma tenha sido manipulado”.