Todos os dias saem estudos científicos sobre o SARS CoV-2, o coronavírus que nos mudou a vida. Todos têm o mesmo objetivo: compreender melhor como se gerou esta pandemia e como combatê-la de forma eficaz. Mas a proliferação de dados entretanto encontrada e a forma como tem vindo a ser divulgada poderá não nos estar a facilitar a vida.
Como conta o New York Times, que fez um levantamento do que tem vindo a ser publicado nos últimos meses, é difícil encontrar outro momento na história em que tantos cientistas dedicaram a sua atenção a um só assunto ao mesmo tempo.
É fazer as contas: em meados de janeiro, apareceram os primeiros artigos que forneciam alguns detalhes sobre este novo coronavírus. Até final desse mês, a Nature contabilizou mais de 50 artigos em 20 dias. E claro que esse número aumentou a uma taxa exponencial digna destes tempos de pandemia.
Uma maré crescente de estudos
O que quer dizer que só o Banco de dados da Biblioteca Nacional de Medicina americana continha, no início de junho, mais de 17 mil artigos publicados sobre a Covid-19. Neste período emergiu ainda um outro site conhecido como bioRXiv, que aloja estudos a precisar ainda da revisão dos pares – uma condição para ser considerado na comunidade científica e um dos pilares da ciência moderna. Só aí contabilizaram-se mais de 4 mil artigos, divulgados na mesma para o grande público.
E essa é a grande questão que aqui se levanta. Antes da pandemia, muito poucas pessoas, além dos cientistas, teriam postos os olhos nesses papéis. Muitos deles acabariam arquivados numa prateleira de biblioteca, anos ou mesmo apenas meses depois de serem concluídos. Mas agora parece que estamos todos nesse barco que navega uma maré crescente de estudos, sobre este coronavírus que nos mudou a vida. Afinal, a grande maioria está disponível online e gratuitamente.
Só que, é preciso alertar, o facto de serem facilmente localizáveis não quer dizer que sejam fáceis de entender. Lê-los é um verdadeiro desafio para um leigo, mesmo alguém que tenha estudado ciências. Além da linguagem muito própria deste tipo de análise, é suposto cumprir ainda uma série de regras não escritas – algo desenvolvido ao longo de gerações.
Das cartas à verificação por pares
Segue-se ainda um exercício muito interessante. Olhar para os primeiros trabalhos científicos, para logo verificar que mais parecem cartas entre amigos, a recontar hobbies e outras manias. Por exemplo, a primeira edição das Transações Filosóficas da Royal Society , publicada a 30 de maio de 1667. Ali havia sobretudo despachos breves com títulos tão peculiares como “Uma descrição do aprimoramento de óculos” ou mesmo “Uma descrição de um bezerro monstruoso muito estranho”.
Na altura, quando os filósofos naturalistas enviavam as suas cartas para as publicações do século XVII, eram os editores que decidiam se valia a pena ou não publicar. Mas após 200 anos de avanços científicos, já não lhes era possível serem especialistas em tudo. Foi quando passaram a enviar os artigos a especialistas externos que compreendiam muito melhor todos os detalhes ali em questão e atestavam-lhe a veracidade.
Em meados do século XX, a prática evoluíra já para o que conhecemos como revisão por pares. Uma publicação só publica um artigo científico depois de um painel de especialistas externos decidir se é ou não aceitável. Às vezes, o artigo era rejeitado por completo. Outras, era exigido apenas que fossem feitas mais pesquisas. Ao longo de todo este tempo é ainda claro que um artigo científico passou a ter um tipo narrativo muito próprio. Como quem diz, não é mais uma carta a contar observações de um naturalista. Trata-se, antes, de uma história em vários atos.
Os efeitos da pandemia
Façamos então uma pequena revisão da matéria dada. Esses documentos passaram a começar com um pouco de contexto, justificando o tipo de pesquisa feita. Os autores começaram então a descrever os métodos usados para conduzir a pesquisa e em seguida apresentavam os resultados. Sempre acompanhados da discussão sobre o que esses dados novos significavam. Não esqueciam sequer qualquer dificuldade ou contratempo que surgira, entretanto. E sugeriam até ideias para outros estudos que verificassem se a sua interpretação era a correta.
A exigência da sua revisão pelos pares, depois, tornou esses estudos ainda mais complicados de interpretar. Sobretudo porque algumas das adendas acabam por ser publicadas separadamente. Agora a pandemia tornou este exercício ainda mais complicado.
Há hoje muito mais artigos publicados do que alguém alguma vez conseguirá ler. Para contornar isso, podemos sempre socorrermo-nos do Google Scholar, uma ferramenta do motor de busca que permite pesquisar apenas trabalhos académicos. Permite, por exemplo, que nos concentremos apenas nos trabalhos que já estão a ser citados por outros científicas. E é aí que se encontram os contornos dos últimos meses da história da ciência.
Cuidado com a desinformação
Nesse exercício é ainda aconselhável manter algum ceticismo. Sobretudo perante artigos que ainda não foram revistos pelos pares – até porque entre estes há muitos que nunca serão aprovados pelas publicações científicas.
E já aconteceu. Em abril, uma equipa de investigadores de Stanford deu a conhecer uma pré-publicação dessas na qual afirmava que a taxa de mortalidade da Covid-19 era muito menor do que outros cientistas estavam a afirmar. Quando Andrew Gelman, um especialista em estatística da Universidade de Columbia, leu o artigo em questão exigiu de imediato um pedido de desculpas publico. Era desinformação, alegou. “Estamos a perder tempo e esforço a discutir um artigo cujo principal argumento era números fruto de um erro estatístico”, justificou Gelman no seu blog.
Mas nada de enganos: lá porque um artigo passa na revisão pelos pares isso também não significa que está acima de escrutínio. No mês passado também todos ouvimos falar do estudo francês que sugeria que a hidroxicloroquina poderia ser eficaz contra o Covid-19. Logo se levantaram uma série de outros cientistas a sublinhar que aquele estudo tinha uma amostra pequena de mais e, por isso, não poderia ser considerada rigorosa. Em maio, outro estudo bem maior foi publicado pela Lancet, a concluir que aquela substância poderia aumentar o risco de morte. Em que ficamos, então?
Ponto de situação
Assim, todos os cuidados são poucos quando estamos diante um artigo científico. É preciso ter em atenção à amostra – são umas meras dezenas ou milhares? Contém as evidências necessárias para chegar àquelas conclusões.
Sim, claro que é um exercício complicado. Dicas para contornar a questão? Podemos sempre consultar os tweets dos principais epidemiologistas e virologistas mundiais, que se têm dado ao trabalho, regularmente, de explicar porque consideram alguns artigos bons e outros maus.
Isto sempre sem esquecer que não se trata de verdades absolutas. Na melhor das hipóteses é um ponto de situação sobre a compreensão possível dos mistérios da natureza.