Três psicólogos, dois alemães e um dinamarquês, estudaram o que leva os humanos a envolver-se em condutas reprováveis no plano ético, moral e social e criam uma teoria unificada dos traços da personalidade dita “maligna”, formada pela perigosa tríade de malfeitores: a tendência narcísica, em que vida gira em torno do próprio umbigo, a maquiavélica, que pressupõe que os fins justificam os meios e, por fim, a tendência psicopata, marcada pela clara falta de empatia. Este trio faz-se ainda acompanhar por outros traços singulares e não menos perturbadores, como agir exclusivamente motivado pelos seus interesses, ter gozo no sofrimento alheio ou praticar atos de malvadez. Ou seja, egoísmo, sadismo, perfídia e outras “más companhias”. Embora diferentes na expressão, estes traços têm um denominador comum, batizado de Fator D pela equipa de Benjamin E. Hilbig, Morten Moshagen e Ingo Zettler.
Havendo tantos testes de inteligência e de personalidade, apetece perguntar em que se baseia este conceito que sugere o recrudescimento das forças do mal na sociedade globalizada e nem sempre orientada para a cooperação?
Fator D, visto à lupa
O estudo, publicado na Psychological Review e divulgado no Science Daily, envolveu a aplicação de questionários a 2500 pessoas, em que tinham de responder se concordavam, ou não, com afirmações do tipo “sei que sou especial porque toda a gente me diz isso” ou “é difícil avançar sem ir por atalhos”. Estes dados foram cruzados com outros, obtidos a partir de escalas e da análise de tendências, relatadas na primeira pessoa, como impulsividade e agressão.
Conclusão: um traço “maléfico” de personalidade faz-se, quase sempre, acompanhar de outros. Assim, é expectável que a tendência para humilhar se faça acompanhar de outras condutas social ou moralmente condenáveis como sejam mentir, roubar ou enganar. E agora a pergunta: é a sociedade que temos que promove condutas predatórias sem filtro ou será a proliferação delas que legitima uma sociedade “má”?
A culpa que nos escapa
“O conceito não é novo”, comenta o psicólogo e psicoterapeuta Vasco Soares, valendo-se dos trabalhos do psicanalista francês Jean Bergeret e das definições sobre as estruturas de personalidade, normal e patológica, que oscilam num continuum entre a neurose e a psicose. ”A psicopatia, ou o lado negro da personalidade, não se enquadra em nenhuma destas estruturas, quanto muito situa-se nos chamados estados-limite (borderline)”, esclarece o clínico. Nesse caso, porquê agora? Haverá mais pessoas com esta característica ou predisposição, sendo os estudos um reflexo disso? Ou o contrário?
Desde tempos ancestrais que os desejos humanos constituem uma ameaça à ordem social. De certa forma, as instituições podem ser encaradas como um instrumento criado por nós para nos proteger de desejos, nossos e dos outros, que coloquem em risco a estabilidade do grupo, da comunidade.
“Quando os mecanismos de controlo social afrouxam, criam-se condições favoráveis para que cada um faça o que quer e lhe apetece”, acrescenta Vasco Soares, referindo-se desagregação das pessoas e do sentido de comunidade resultantes da industrialização. Assim, condutas que visam o benefício de um a expensas de outros sem considerar a cooperação ou o bem comum, que noutra época seriam alvo de marginalização, parecem causar menos dano na reputação e, até, serem premiadas. Não é por acaso que num cenário isento de culpa, a probabilidade de existirem mais fatores de disrupção é grande, como bem ilustram as distopias e séries futuristas que conquistaram notoriedade, como Westworld, o parque de diversões em que os humanos dão vazão aos mais ignóbeis instintos com andróides programados para esse fim. Não olhar aos meios para atingir os fins e agir em benefício próprio sem grandes contemplações é o risco inerente às sociedades que têm a liberdade e a desregulação de normas como centro. Segundo o clínico, no lugar da estrutura de personalidade neurótica descrita por Sigmund Freud, hoje pode ser mais frequente encontrar “modos de funcionamento patológico marcados por um registo compensatório, que não passam de uma fuga à ameaça de depressão”. São formas de comportar-se que consomem muita energia e são desgastantes.
Um velho dilema
Manter um inimigo guardado a sete chaves nunca foi boa política, mesmo se em nome da preservação da ordem e segurança, com prejuízo da liberdade. No caso dos instintos malignos, expressá-los de forma segura em vez de passá-los à prática revela-se um ato de saúde mental. Por exemplo, confessar a alguém ter vontade de agredir outro é diferente de agredi-lo mesmo, no plano físico, com todas as consequências que daí advêm, como sugerem, de resto, os entendidos em inteligência emocional.
O psiquiatra e psicoterapeuta suíço Carl Jung, a quem devemos a expressão “lado sombra”, defendia que tendemos a projetar nos outros as facetas que não gostamos ou não admitimos em nós: os outros, que nos enervam, sem que saibamos exatamente ao certo porquê. A proposta para transcender tal dilema consistia em abraçar esses impulsos e tendências, reconhecê-los em vez de os suprimir. Aceitar o lado negro, vilão, da nossa personalidade, é uma forma de evitar que esse lado não ganhe um poder desmesurado sobre nós.
Quem não se sentiu atraído por Hannibal Lecter, do filme Silêncio dos Inocentes, ou não se deixou encantar pela saga de Dexter ou, tomou partido dos protagonistas de Casa de Papel?
Há quase um século, em O Mal-Estar na Civilização, Sigmund Freud dava a saber que havia uma fatura a pagar pelo avanço civilizacional: progredir no plano social e cultural era sinónimo de sobrevivência mas implicava, de algum modo, o sacrifício da vida instintiva (princípio do prazer, espontaneidade).
Identificar-se, na ficção, com a maléfica, o malandro, a bruxa e o terrorista, é uma maneira de gerir este conflito interno entre o bom e o mau que há em nós.
Qual é a sua pontuação no fator D?
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