A memória episódica é aquela que, mesmo passado algum tempo, nos faz lembrar de determinado acontecimento, em certo dia, num dado lugar. Aquele dia em que nos bateram no carro, no centro do Porto. Ou aquele outro em que nos roubaram a carteira, em Sintra. E aquela vez em que fomos à praia no Alentejo e estava tanto vento que tivemos de ir embora? O cérebro humano retém com frequência este tipo de recordações e, segundo um estudo agora publicado, também os cães são capazes de o fazer.
Esta é uma realidade que nunca ninguém conseguiu provar, devido à impossibilidade de se “investigar o que vai na cabeça de um cão”, como ressalva Claudia Fugazza, da universidade húngara de Eotvos Lorand, em Budapeste, e principal responsável pela nova pesquisa. Mas a etologista – alguém que se decida ao estudo do comportamento animal – e a sua equipa acreditam que a memória dos cães é mais parecida com a dos humanos do que se supõe.
“Penso que todos os donos de cães sabem que os cães conseguem memorizar acontecimentos. O que é novo e importante é que os cães podem lembrar-se de acontecimentos mesmo que estes não pareçam importantes”, sublinha a investigadora, para distinguir a memória canina que é induzida através da repetição e imitação das ações do dono daquela que é criada sem que exista qualquer treino associado.
O estudo, publicado no jornal científico Current Biology, partiu deste pressuposto. Primeiro, 17 cães receberam indicações para executarem as mesmas ações do dono, num processo de imitação, o chamado método de treino “faz como eu faço”. E a maioria dos animais respondeu como é suposto responder, repetindo os movimentos do dono. Mas, numa segunda fase, os mesmos cães receberam instruções para ficarem deitados, qualquer que fosse a ação dos donos.
“Desta maneira, substituímos a expetativa que eles tinham de lhes ser pedido que imitassem pela expetativa de lhes ser pedido que se deitassem”, explica Claudia Fugazza. A intenção era mostrar-lhes que as ações dos donos seriam irrelevantes para o que eles deveriam fazer a seguir. “Em seguida testámos se os cães se lembravam das ações do dono quando, inesperadamente, recebiam o comando para imitarem, em vez de se deitarem. Fizemos isso com um minuto e uma hora de intervalo”. Resultado: 60% dos cães imitaram os donos no primeiro caso (vídeo aqui) e 35% fizeram-no no segundo.
Para os autores do estudo, “estas conclusões mostram que os cães recordam acontecimentos passados tão complexos como ações humanas, mesmo que não esperem um teste de memória”. E constituem “uma evidência provável de memória episódica”.
Apesar de as conclusões apontarem para a ideia de que a memória dos cães é mais complexa e parecida com a dos humanos do que se pensava, Fugazza e os outros investigadores foram cautelosos ao não afirmarem taxativamente que os cães têm memória episódica. Há também vozes na comunidade científica a defenderem que não se pode ter a certeza só com base neste estudo. Mas os seus autores acreditam que, com este método e estes dados, fica aberta a porta para aprofundar o conhecimento das capacidades do cérebro canino para criar memórias episódicas – uma característica que, até prova irrefutável em contrário, é exclusiva da raça humana.