Peste negra
Bactéria da grande matança
Já lhe chamaram “a mãe de todas as pestes” e, à imagem do novo coronavírus, veio de longe – da China e da Ásia Central. A tese científica mais consensual situa a propagação na Europa, entre 1347 e 1353, da peste negra, ou bubónica, causada pela mortífera bactéria Yersinia pestis, num exército de pulgas vetores e ratos hospedeiros que circulavam a bordo de cargas e mercadorias. Depois, a mortalidade dos roedores libertou uma enorme quantidade de pulgas infetadas, que encontraram no ser humano o novo hospedeiro. O doente começava por ter febre muito alta e aparecia-lhe um furúnculo doloroso, do tamanho de um ovo, na virilha ou na axila. Ao segundo ou terceiro dia, o corpo ficava coberto por esses bubões, que acabavam por rebentar, deixando sair o pus. Seguiam-se manchas escuras na pele, indicadoras de hemorragias. Assim morreram, naquele período, 200 milhões de pessoas na Europa.
A peste negra “assemelhou-se a um megaincêndio transcontinental: ‘ardendo’ em várias frentes, quando em algumas regiões o pior havia passado, outras começavam a sua própria experiência de devastação epidemiológica”, diz André Oliveira da Silva, investigador nas universidades do Porto e de Évora. “A doença avançou livremente, provocando uma crise de mortalidade gravíssima, representável pelo que hoje designaríamos por uma curva epidemiológica altíssima, brusca e, por isso mesmo, tão devastadora quanto efémera, não tendo durado mais do que alguns meses em cada região”, acrescenta. Não havia então qualquer remédio eficaz no combate à doença, nem se conhecia ou compreendia a sua etiologia. “A peste negra acabou por terminar naturalmente o seu ciclo de destruição”, explica aquele especialista. “As populações de roedores foram dizimadas, as humanas foram-no por consequência, e passará quase uma década até ao regresso da doença, que fará aparições esporádicas daí em diante”, esclarece.
A pandemia deixou no País uma desorganização generalizada, e a recuperação socioeconómica conduziu a uma realidade diferente da anterior. Ainda não se sabe quantas pessoas morreram da doença em Portugal – mas verificou-se a extinção de grande parte da força de trabalho que levou à procura de mão de obra e à subida de salários.
Varíola
Louvor às leiteiras
Diz-se que as primeiras evidências da varíola são tão antigas quanto isto: foram encontradas em múmias egípcias datadas do século III. Com certeza científica, sabe-se que a infeção pelo vírus da varíola dava origem a uma doença febril, acompanhada de mal-estar geral e manifestações cutâneas muito características: manchas, seguidas de bolhas e pústulas, que resultavam em crostas e descamação, deixando cicatrizes (as “bexigas”). Eram os sinais visíveis de uma infeção geral. A doença era letal em um em cada três casos, em média. Só no século XVI causou 56 milhões de mortes.
Mas, hoje, a varíola é a única doença até agora erradicada da superfície da Terra, através de um programa global dirigido pela Organização Mundial da Saúde, baseado na vacinação massiva das populações e na identificação e ação precoce sobre novos surtos de transmissão da patologia. Os louros precedentes, porém, têm de ser atribuídos ao cientista inglês Edward Jenner, que descobriu a vacina contra a varíola no século XVIII. O investigador “observou que as leiteiras que conhecia tinham uma pele isenta das cicatrizes da doença, em contraste com o que acontecia com a população em geral”, conta Constantino Sakellarides, antigo diretor-geral da Saúde (1997-1999). “Acabou por encontrar a explicação no facto de as leiteiras estarem sujeitas a uma infeção similar proveniente das vacas, sem as consequências da varíola, mas que as protegia desta doença”, acrescenta aquele especialista. E assim nasceu a eficaz vacina contra a varíola, generalizada desde o século XIX.
Os esforços para a erradicação da doença iniciaram-se em 1959 e terminaram em 1980, com uma declaração formal de eliminação da patologia pela Assembleia-Geral da Organização Mundial da Saúde. “Mas a história da varíola ainda não acabou completamente”, alerta Sakellarides. “Apesar das resoluções da Assembleia Mundial de Saúde de 1996 e de 1999, no sentido da destruição do vírus da varíola, mantido para efeitos de investigação em laboratórios de alta segurança nos EUA e na Federação Russa, isso ainda não aconteceu”, diz. E porquê? “Por desconfianças mútuas sobre o efetivo cumprimento daquelas resoluções.”
Gripe espanhola
Portugal de rastos
Em 1918, Portugal bateu no fundo. Estava no poder Sidónio Pais, que tinha inaugurado um regime presidencialista após depor o governo republicano que promovera a participação de Portugal na I Guerra Mundial (1914-18). Com Sidónio estava uma coligação periclitante que juntava republicanos, monárquicos, católicos e até sindicalistas, que se opunham ao republicanismo laico, anticlerical e intervencionista. Estava-se à beira de uma guerra civil. Na sociedade, avultava uma população rural pobre de assalariados e pequeníssimos proprietários. E, na saúde pública, havia carências de toda a ordem.
Foi neste cenário de extrema fragilidade que Portugal sofreu, a partir de maio de 1918, os efeitos de uma enorme pandemia de gripe. Chamaram-lhe gripe espanhola, ou pneumónica, embora a origem do contágio, segundo a opinião maioritária, estivesse num acampamento militar no Kansas, EUA, onde a doença teria aparecido em março daquele ano. O certo é que o vírus da gripe em causa, do subtipo A (H1N1), resultou numa pandemia de contagiosidade extrema e de incubação rapidíssima. E as principais vítimas eram jovens adultos entre os 15 e os 45 anos, que sucumbiam a pneumonias fulminantes. Estima-se que, globalmente, a pandemia vitimou entre 20 e 100 milhões de pessoas. Em Portugal, terá provocado mais de 100 mil mortes, numa época em que o País andava pelos seis milhões de habitantes.
A mortandade só começou a diminuir no final daquele ano. “Para a opinião médica, a pandemia está a acabar em finais de novembro, altura em que passou o pico da sua incidência, embora o vírus persistisse durante décadas de forma endémica”, diz José Manuel Sobral, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Naquele mesmo mês, acrescenta o especialista, o terror provocado pela pandemia “está a esvair-se, como o mostram os festejos que levam milhares de pessoas às ruas em Lisboa e outros locais para celebrar o armistício que põe fim à Grande Guerra”, a 11 de novembro de 1918. E “o medo iria ser substituído pelo seu esquecimento nas gerações seguintes”. Um padrão histórico.
Poliomielite
A próxima a erradicar?
Uma em cada 200 infeções pelo vírus da poliomielite resulta numa paralisia irreversível, habitualmente dos membros inferiores. Entre 5% a 10% das pessoas afetadas perderão a vida em consequência da imobilização dos músculos respiratórios. Pior: a poliomielite, doença transmissível, afeta sobretudo crianças com menos de 5 anos de idade.
Quando, em 1988, a Assembleia Geral da Organização Mundial da Saúde decidiu lançar um programa para a erradicação daquela doença, ela atingia, por ano, centenas de milhares de crianças em 125 países, onde a patologia era endémica. Em finais de 2019, já se registaram apenas 175 casos e, hoje, a doença está limitada a dois países – Paquistão e Afeganistão. “A intenção inicial foi conseguir a erradicação da doença no ano 2000, mas isso revelou-se irrealizável, pelo que a nova meta situa-se em 2023”, diz Constantino Sakellarides. A erradicação da poliomielite baseia-se num extenso programa de vacinação de âmbito universal, acompanhado por uma vigilância epidemiológica rigorosa, que permita identificar e atuar precocemente sobre novos surtos de transmissão.
“Duas vacinas estão disponíveis para o efeito: uma vacina oral, à base de um vírus vivo, mas atenuado, de fácil administração; e uma outra vacina com um vírus inativado, de mais difícil administração, menos eficaz na interrupção da transmissão, mas útil na prevenção das paralisias provocadas pela infeção”, explica Constantino Sakellarides. “Um dos contratempos do processo de erradicação está no facto de o vírus inativado poder tornar-se de novo agressivo em pessoas com o sistema imunitário deprimido”, acrescenta. Outro exemplo das dificuldades deste processo foi a interrupção do programa de vacinação no Norte da Nigéria, em 2003. “Espalhou-se o boato de que a vacina tinha sido manipulada para incluir substâncias que diminuíam a fertilidade da população, podendo até incluir o VIH”, o vírus da sida, conta Sakellarides. Resultado: além de ter ocorrido um novo surto epidémico na Nigéria, também aconteceu a reintrodução do vírus da poliomielite em 20 outros países…
Gripes asiáticas
Mortes em segredo
Em 1958, Vitorino Henriques era militar-condutor no complexo de Santa Margarida, em Constância (Santarém). Agora com 86 anos, lembra-se de, à época, “transportar carradas de militares, dormentes ou adormecidos, uns sentados e outros deitados no chão do camião, para hospitais à volta de Santa Margarida”. Mas o metalúrgico reformado nunca chegou a saber quantos daqueles camaradas que transportou para unidades hospitalares sucumbiram a um novo subtipo do vírus da gripe, o H2N2, que os atingiu. Estava-se no tempo da ditadura, lembra. “Naquela altura, as informações eram escassas.”
O vírus H2N2 surgiu em fevereiro de 1957, na Ásia, e em apenas um ano ceifou de um a dois milhões de vidas. Isto apesar de a vacina contra o novo vírus ter sido rapidamente desenvolvida. A partir de julho daquele ano, cientistas dos EUA “efetuaram testes nos recrutas de bases militares, disponibilizando uma vacina com uma dosagem eficaz quando a pandemia atingiu o auge”, diz Helena da Silva, investigadora no Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. “Em outubro, a vacina estava disponível no Reino Unido e posteriormente no resto do mundo”, acrescenta. Portugal terá então desenvolvido uma vacina nacional, designada Imunadol, mas o seu rasto perdeu-se.
Cerca de dez anos depois, o H2N2 sofreu uma “mudança antigénica que levou ao surgimento de um novo subtipo, o H3N2, e à pandemia de 1968”, a chamada gripe de Hong Kong, continua Helena da Silva. A vacina seria disponibilizada cerca de quatro meses após o início da pandemia e, embora fosse provável que uma parte da população tivesse defesas imunitárias, a gripe de Hong Kong ainda matou de um a quatro milhões de pessoas até 1970. E o vírus ainda hoje circula, agora no lote da gripe sazonal.
Sida
E a polémica continua
Em fevereiro passado, em vésperas de a pandemia do novo coronavírus chegar a Portugal, ainda se noticiavam “queixas regulares” de homens gay ou bissexuais que viram a sua vontade de doar sangue recusada. Em causa está a probabilidade, mesmo que ínfima, de aqueles dadores, encontrando-se infetados com o VIH, o vírus que provoca a sida (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida), ainda não apresentarem, na altura da doação, uma carga viral detetável pelos testes de despiste. Para resolver esta controvérsia, as autoridades de saúde prometem uma norma definitiva no próximo mês de junho.
Quase parece um regresso a 1981, quando a infeção pelo VIH e a sida abalaram o mundo, apresentando hoje um cortejo de mortes que se estima situarem-se entre 25 e 35 milhões. “No início da epidemia, a comunicação sobre VIH/Sida focava-se no alarme e fatalismo de ‘morte certa’, baseada em estratégias de controlo da doença através do medo e da perceção de elevado risco”, diz Sónia Dias, professora da Escola Nacional de Saúde Pública, da Universidade Nova de Lisboa. “Esta abordagem, além de não ter sido eficaz, resultou num forte estigma de discriminação que ainda hoje conduz à exclusão social das pessoas afetadas e à subutilização dos serviços de saúde para prevenção, testes e tratamento”, conclui.