A saúde e o ambiente são duas faces da mesma moeda. A poluição e as alterações climáticas têm efeitos profundos na saúde humana; o setor da saúde, por seu lado, tem um grande impacto nas emissões de gases com efeito de estufa. É esta ligação umbilical que levou à criação, há um ano, do Conselho Português para a Saúde e Ambiente. “Tem de haver uma união das várias organizações ligadas à saúde, para termos uma voz comum quanto à repercussão que as alterações climáticas e a degradação ambiental estão a ter na saúde das pessoas em Portugal”, diz o médico Luís Campos, presidente da instituição.
Os problemas ambientais têm, quase sempre, potenciais impactos na saúde. As pessoas costumam fazer essa ligação?
Não. Ainda há uma grande falta de consciencialização do público, em geral, e dos profissionais de saúde, em particular. Há uma discrepância entre o impacto das alterações climáticas na saúde, a importância que têm no nosso quotidiano, no nosso futuro, e a consciencialização das pessoas ou a priorização política.
Se a fizessem, levariam mais a sério o ambiente, a poluição, as alterações climáticas?
Se houver esta consciencialização dos profissionais de saúde, das pessoas, e se isso se tornar uma prioridade política, seguramente poderá haver mudanças de comportamentos que são absolutamente necessárias, quer ao nível nacional quer ao nível das organizações ou do comportamento individual.
Segundo a Agência Europeia do Ambiente, 96% dos europeus foram expostos a níveis de partículas finas acima dos limites definidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Quão preocupante é esta situação?
Portugal está a fazer um bom trabalho no campo da diminuição da poluição e do aumento da qualidade do ar. Somos dos países europeus com melhor qualidade do ar. Mas, ao nível global, a situação é muito preocupante. Calcula-se que nove em cada dez pessoas respiram, neste momento, ar com altos níveis de poluentes que superam os limites estabelecidos pela OMS. Naturalmente, isso tem efeitos em várias patologias, como as doenças respiratórias, desde a doença pulmonar obstrutiva crónica ao cancro do pulmão, mas também as doenças cerebrocardiovasculares, que são as que têm maior influência dos fatores ambientais.
A descarbonização, que está a ser feita para mitigar as alterações climáticas, vai também ajudar a resolver este problema?
O aquecimento global deve-se principalmente à emissão de gases com efeito de estufa, e estes são vários: dióxido de carbono, gases fluorados, metano, entre outros. Cada um destes gases tem diferentes origens, por isso é que este é um problema complexo: as causas e as consequências são diversas e exigem a cooperação de todos. O que mais contribui para as alterações climáticas é a energia, pelo que a utilização de renováveis é uma das medidas prioritárias, mas também os transportes, o desperdício na alimentação, os plásticos, etc. Cada organização, sistema e serviço tem de identificar o seu impacto na emissão de gases com efeito de estufa, para encontrar soluções. O setor da saúde é responsável por 4,4% das emissões ao nível global, sendo que em Portugal é 4,8%.
Qual a origem dessas emissões?
Resultam do fornecimento de bens e serviços, dos medicamentos e equipamentos, do transporte, da energia, dos sistemas de aquecimento e refrigeração, da iluminação. E há outras causas mais específicas, que representam uma parte diminuta das emissões, mas no seu conjunto são muito significativas. Um exemplo são os inaladores usados para a asma: alguns têm hidrofluorcarbonetos, com um potencial de aquecimento duas mil vezes superior ao dióxido de carbono. No entanto, existem 28 mecanismos de inalação que não têm este efeito. Outro exemplo são os gases anestésicos, que representam 5% da emissão total de gases com efeito de estufa, no sistema de saúde, apesar de haver alternativas. Isto são problemas que dependem dos profissionais e que são relativamente fáceis de mudar.
Se é fácil, porque não mudam?
Essa é uma pergunta que se aplica não só às alterações climáticas e ao impacto ambiental mas também a toda a Ciência da implementação: por que razão medidas óbvias, que fazem bem às pessoas e que sabemos como implementá-las, não são implementadas? É tudo muito complexo. As coisas só acontecem quando os objetivos se tornam uma prioridade política. Tem de haver uma união das várias organizações ligadas à saúde, para termos uma voz comum quanto à repercussão que as alterações climáticas e a degradação ambiental estão a ter na saúde das pessoas em Portugal. Daí termos fundado o Conselho Português para a Saúde e Ambiente, que conta já com 62 organizações relacionadas com a saúde, incluindo seis ordens profissionais.
A ideia é provocar a mudança de baixo para cima?
Tem de ser em ambas as direções, top down e bottom up. Para que isto aconteça, tem de haver o envolvimento de todos, ao nível nacional, das organizações e do comportamento individual, uma maior consciencialização do público e dos profissionais de saúde. Além disso, precisamos de mais educação relativa a estes componentes, desde a escola primária e do liceu às faculdades, por exemplo na faculdade de Medicina. O tema da saúde e das alterações climáticas tem de ser introduzido no ensino pré e pós-graduado, e isso ainda não acontece. Nós, profissionais de saúde, temos uma obrigação ética adicional de nos envolvermos nesta luta e de sermos exemplo na adoção de comportamentos amigos do ambiente, como andar mais a pé e mudar a alimentação. Isto tem um efeito. Por cada quilo de carne de vaca, são emitidos 100 quilos de dióxido de carbono.
Esses são exemplos de que o ambiente e a saúde andam de mãos dadas?
Este é um ponto muito importante. Os benefícios destes comportamentos não são só ambientais. Diminuir a pegada ecológica melhora também a saúde das pessoas, o que, por sua vez, leva a que sejam necessários menos serviços de saúde. Da mesma forma, muitas das medidas, que as organizações podem implementar no sentido de melhorar a sustentabilidade, acabam por ser rentáveis. Isso está bem estudado: energias renováveis, substituição de lâmpadas para lâmpadas LED, melhor utilização da água…
O setor da saúde está preparado para enfrentar as consequências futuras das alterações climáticas na saúde? Mais do que isso, está preparado para lidar com os impactos que hoje já se sentem?
Diria que não. O setor é fundamental em duas coisas: na redução da sua pegada ecológica, e para isso deve haver uma estratégia e mudança de comportamentos, e tem também de ser mais resiliente para enfrentar as mudanças epidemiológicas que estão a acontecer e a maior eventualidade de episódios climáticos inesperados, como inundações, secas, incêndios, etc., que já estão a ter uma repercussão muito grande na saúde das pessoas. Tivemos um bom teste, durante a pandemia, à capacidade de resposta do sistema de saúde. Felizmente, estamos muito melhor do que países onde não há um Serviço Nacional de Saúde, mas foram expostas algumas fragilidades do sistema: a insuficiência de recursos humanos, a fragmentação entre cuidados primários, cuidados hospitalares e continuados, a falta de ligação à segurança social e a rigidez dos hospitais, com um modelo dividido em silos. Por exemplo: enquanto os hospitais privados se adaptaram rapidamente à telemedicina, os públicos continuam a fazer consultas por telefone. O que aprendemos com a pandemia? Muito pouco. Não estamos suficientemente preparados para fazer face a acontecimentos inesperados.
As pessoas mais velhas são as mais vulneráveis aos impactos das alterações climáticas, como as ondas de calor. Essa pressão adicional sobre o sistema de saúde está a ser tido em conta?
Não é só a população idosa, são também as crianças e as pessoas mais pobres. Mas, sim, quanto melhor for a resposta à população idosa, melhor será também em situações de crise. E aí estamos mais uma vez a falhar. Tem de haver uma estratégia nacional para se lidar com o aumento da população idosa. Existe um programa para as doenças cerebrocardiovasculares, oncológicas, diabetes, mas não existe um programa para a multimorbilidade, ou seja para o aumento das doenças crónicas que acompanham o envelhecimento, particularmente no caso dos doentes crónicos complexos, que são os mais idosos com mais doenças crónicas. É um problema grave e complexo, e não há soluções simples para problemas complexos.