Ao longe, aqueles gigantes parecem órgãos de tubos erguidos para os céus, numa paisagem que a Unesco há muito classificou como reserva da biosfera. Mas um olhar mais atento àquela região do Arizona, no sul dos Estados Unidos, também vislumbra uma tragédia ecológica, consideram os ambientalistas.
Ali, onde há mais de um ano irromperam os bulldozers a mando do ainda presidente dos EUA, Donald Trump, para erguer uma fronteira com o México, há agora um muro de aço e betão com nove metros de altura e ainda por acabar – mas que já partiu ao meio uma série de reservas da natureza. Entre elas, o famoso Parque Nacional Organ Pipe Cactus, que faz fronteira com o estado mexicano de Sonora, e o único local dos EUA onde aquela espécie peculiar de catos cresce de forma selvagem. E os efeitos dessa divisão não se fizeram esperar.
Segundo os mais recentes relatos, a obra em construção já está a bloquear as rotas de caça e a explorar indevidamente inúmeros litros de água tão preciosa ao deserto para fazer cimento, além de ter imposto uma iluminação dia e noite, claramente perturbadora para toda a vida selvagem da região. O pior? “Se o plano avançar como planeado, pode alterar para sempre a história evolutiva da América do Norte”, sublinha à National Geographic Myles Traphagen, especialista em conservação da natureza e o responsável do programa de vigilância daquelas reservas, depois de ter anunciado no Twitter que Trump “devia ser julgado por crimes contra o planeta e a humanidade”
Longe da opinião pública
Foi em agosto de 2019 que foram instalados os primeiros painéis ao longo de mais de três quilómetros do parque natural onde crescem os tais catos monumentais. O objetivo era substituir a pequena vedação de três metros que atravessava o deserto e que fora erguida de forma a permitir aos animais circular de forma livre. Menos de um mês depois, surgiram logo os avisos do serviço nacional de parques naturais, afirmando que a nova barreira era uma ameaça clara a artefactos arqueológicos que representam perto de 16 mil anos de história humana. Nada que sensibilizasse os donos da obra nem o seu mandante. Entretanto, cresceram mais 650 quilómetros de muro, que se espalhou pela Califórnia e pelo Novo México. E ainda faltam outros 500 quilómetros, a fazer fé no plano anunciado pela presidência americana.
Mas a denúncia não recebeu o esperado apoio da opinião pública e ficou esquecida. As paredes do muro estão a ser erguidas em lugares onde a maioria das pessoas não vai e, neste estranho ano de 2020, as atenções acabaram obviamente por se dividir entre a governação em ziguezague, a campanha em ano de eleições e ainda, claro, a pandemia de Covid-19, que provocou uma crise de saúde pública sem precedentes e milhares de mortos. A indignação ficou toda para os ambientalistas, que insistem agora em traduzir a enormidade da obra em números.
Por exemplo, sabe-se que usou qualquer coisa como 600 mil toneladas de aço, o suficiente para erguer 10 Empire State Buildings, o famoso arranha-céus de cem andares que se destaca nos céus de Nova Iorque. Com 12 mil milhões de euros garantidos para a financiar, custará aproximadamente o dobro do que o Canal do Panamá custou no início dos anos 1900, à cotação de hoje. Um investimento que permitiria, por exemplo, construir e lançar três telescópios espaciais como o Hubble.
Barreira imensa de cimento, luz e água
Perante as críticas, os responsáveis da fronteira bem vieram sugerir que se baixasse ligeiramente a escala do que foi planeado – mas isso, insistem os defensores das reservas, não resolve nada. Como sublinha Laiken Jordahl, do Center for a Biological Diversity, num artigo de opinião publicado há dias no The New York Times, só este muro parcial já é um crime contra o ambiente de dimensões incomensuráveis. Ou “tudo o que eu levei a vida empenhado em proteger”.
Um problema óbvio que o muro cria, explica aquele especialista, é que bloqueia o movimento da vida selvagem. A vedação impede não só os animais de procurar e encontrar alimentos como de migrar e espalhar os seus genes, “o que poderia levar à extinção regional de várias espécies”, acrescenta Aaron Flesch, investigador da Universidade do Arizona que também se tem dedicado a estudar o impacto dos muros na vida animal.
Depois, há a poluição luminosa. Segundo o plano conhecido, 90 por cento destas novas vedações terão luzes, algumas das quais estarão acesas a todo o momento, dia e noite. “Isto quando sabemos perfeitamente que vai perturbar a atividade noturna de morcegos, insetos, aves e outros animais”, salienta ainda Kevin Dahl, da Associação para a Conservação dos Parques Naturais dos EUA, que também já tornou público que a nova vedação está simplesmente “a destruir tudo o que se pretendia proteger com a criação das reservas”.
“Quer goste quer não”
Há ainda a questão da água. A criação de cimento para a base da parede da fronteira cria pó e consome uma enorme quantidade de água dos aquíferos do deserto – perto de 2,6 mil litros por cada 1,6 quilómetros. Algo que, insistem os especialistas, pode pôr em perigo preciosas fontes de água como a de Quitobaquito Springs, onde o caudal atingiu um mínimo histórico este Verão – afetando ainda o lar de quatro espécies de peixes ameaçadas, na reserva de San Bernardino, na Califórnia. Ali, junto à bacia hidrográfica do rio Yaqui, todos são também unânimes a apregoar que a utilização da água para a construção do muro é, de momento, a maior ameaça às espécies em extinção.
O pior, reconhece-se agora, nem é que a construção possa continuar a galgar espaço na zona, pelo menos até janeiro. Mesmo que Joe Biden, o democrata que foi a eleições com Donald Trump, ganhe a presidência americana, boa parte do plano poderá mesmo de seguir em frente. “Com todo o investimento já feito, será difícil parar a obra e explicar o custo elevadíssimo que isso terá para os contribuintes”, assinalou à ProPublica, Scott Amey, conselheiro geral do grupo de Fiscalização do projeto, antes de rematar: “Biden poderá ter mesmo de completar certas partes do muro. Quer goste quer não”.